Um Coração Escravizado - O culto dos falsos deuses

AS ÉPOCAS DO CORAÇÃO

Um Coração escravizado - O culto dos falsos deuses

 

 

 

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    John Welch, O. Carm.

Um coração escravizado. O culto de falsos deuses

Convivendo com os ídolos

Um segundo tema permanente na espiritualidade do Carmelo é a necessidade de decidir a que Deus seguir. A nossa tradição nasceu no Monte Carmelo, lugar da luta entre os seguidores de Yahvé e os de Baal. Elias exortou o seu povo a fazer um escolha clara e definitiva do único e verdadeiro Deus. Tanto a comunidade Carmelita como cada Carmelita individualmente tiveram de lutar continuamente contra as forças da desintegração e fragmentação provocadas pelo seguimento dos ídolos.

 

Nicolau Gálico na carta Ignea Saggita dirigida a toda a Ordem, acusava os seus membros de terem perdido o caminho ao emigrarem do deserto para a cidade e se acostumavam às atracções que ela oferecia. Acusava-os de seguir os seus próprios desejos desordenados sob a capa da necessidade de levar aos outros o seu próprio serviço. As reformas de Albi, Mântua, João Soreth, Teresa de Ávila e Turena serviram para recordar continuamente aos Carmelitas que deviam ter sempre um só Deus e servi-Lo de todo o coração.

 

Os santos da nossa tradição sabiam quão difícil é encontrar e seguir o Deus verdadeiro e distingui-lo de tantos falsos deuses que nos são oferecidos. Esta Presença que se alberga no mais fundo de nós mesmos encontra-se também no mundo que nos cerca. No Cântico Espiritual, João da Cruz diz: “E todos quantos vagam, de Ti me vão mil graças relatando...”. Teresa de Ávila aconselhava: “Deixai que as criaturas vos falem do seu criador”.

 

A tendência humana a exagerar leva a pedir à criação para que seja mais do que realmente é. Frequentemente colocamos os desejos do nosso coração nalguma parte da criação de Deus, pedindo-lhe que realize o que procuramos. Pedimos a uma parte da criação para que seja o incriado. Escolhemos um bem e pedimos-lhe que se converta no Bem.

 

O coração, cansado de peregrinar, procura assentar e construir uma casa, recusando-se a avançar para diante. Contenta-se com os deuses menores, encontrando neles uma espécie de alegria, paz, identidade, segurança ou outro tipo de conforto para os seus desejos. Este consolo temporário mascara um problema espiritual, como também um problema de desenvolvimento humano. João da Cruz estava convencido de que a personalidade de uma pessoa começa a tornar-se desequilibrada quando a pessoa se centra em algo ou alguém que não seja Deus.

 

Estas “ataduras” criam situações de morte. A qualquer coisa ou pessoa a quem peça que seja o meu deus e realize os meus desejos mais profundos, não pode resistir a esta minha expectativa. Sob esta pressão, o ídolo começará a desmoronar-se e peço-lhe que seja o meu “tudo”. E porque não podemos crescer mais além dos nossos deuses, um deus menor significa um ser humano menor. Consequentemente, aquilo a que estou “atado” morre sob o peso das minhas necessidades e eu com ele, porque os meus desejos mais profundos não encontram nada nem ninguém que condiga com a sua intensidade.

 

Relação desordenada

 Quando a nossa tradição fala das “ataduras”, isto não quer dizer que a relação com o mundo seja um problema. Algumas vezes, certamente, o mundo é um problema. Mas temos que nos relacionar com o único mundo que temos. A relação com o mundo não é o problema fundamental das “ataduras”, mas o modo como nos relacionamos com ele é que se converte no problema. Os nossos santos falam a pessoas adultas cujos corações foram escravizados por alguém ou alguma coisa que ocupou o lugar de Deus. Não é necessariamente esta pessoa ou esta coisa o problema, mas antes a maneira como nos relacionamos com elas, o modo desordenada como expressamos o nosso desejo ou aspiração.

 

É irrelevante se o ídolo é valioso ou não. A relação é o factor fundamental. Um incidente na vida de João da Cruz pode ser ilustrativo. Um dos seus frades tinha uma simples cruz feita de madeira e João tirou-lha. O frade pouco mais tinha, e a cruz não tinha nenhum valor, mas João discerniu que o frade estava apegado a essa cruz tosca de um modo desordenado. Tinha-se convertido evidentemente em qualquer coisa de intocável, o que indicava que a relação do frade com a sua cruz era desviada.

 

João observou que ainda que o pássaro esteja atado por uma corda ou por um fio, mesmo assim está atado. O coração está escravizado pelos seus próprios ídolos e já não é livre para escutar o convite do Amado. João identifica uma pessoa agarrada aos ídolos como uma pessoa pobremente sintonizada com Deus. João estava convencido de que uma pessoa se converte naquilo que ama. Este falso deus fomentará um falso “eu”.

 

É importante realçar que a tradição Carmelita não é partidária do abandono do mundo, mas antes a de manter uma correcta relação com o mundo criado por Deus. Sem uma correcta interpretação, poderia pensar-se que o Carmelo vê no envolvimento com o mundo um obstáculo para a relação com Deus. Pelo contrário, é no mundo criado por Deus onde nos encontramos com Ele.

 

A tradição Carmelita dirige-se a pessoas cujos corações foram ao mundo procurar a sua realização e nesta procura dispersaram-se e dividiram-se. Isto acontece quando o cristão coloca os desejos do seu coração nas posses e nas relações que não podem encher a intensidade desses desejos e começa então a experimentar a paralisia na própria vida: e esta é uma situação deteriorante. Este mundo ao qual o cristão procura agarrar-se freneticamente, exprime-lhe a vida através de expectativas. E o cristão ajusta-se aos ídolos e não se transforma em Deus.

 

Um tema dos nossos dias que se relaciona com o tema tradicional da “atadura” é o da dependência. Todos nos damos conta, de um modo ou de outro, de que somos dependentes de alguma coisa ou de alguém, e que só a graça de Deus nos pode libertar das nossas dependências. Pode-se ser dependente de coisas obviamente destrutivas, mas pode-se ser também dependente da Igreja, do Papa, das práticas religiosas, até mesmo dependente do Carmelo e de Deus, mas desse deus criado por nós próprios.

 

Por outras palavras, podemos pedir, quer individualmente quer como povo, a uma parte da criação de Deus que seja incriada, que se converta no alimento das nossas fomes mais profundas. Pedimos à criação o que só Deus nos pode dar. E a nossa tradição confirma que nada, nenhuma parte da criação, pode substituir Deus. Só o que é nada (nenhuma coisa e por sua vez tudo) pode ser alimento suficiente para a nossa fome.

 

Quando João da Cruz desenhou a montanha estilizada para representar o caminho da transformação, desenhou três caminhos que levam até ao cimo dela. Os dois caminhos exteriores, um dos bens do mundo e o outro dos bens espirituais, nenhum deles chega ao cimo. Só o caminho do meio, o dos nadas, alcança o cimo do Carmelo. Através de textos explica o seu ensino acerca do desenho. O conteúdo dos textos são variações do mesmo tema “possuir tudo, possuir nada”.

 

O texto explicativo que aparece na parte inferior do desenho ajuda-nos a entender a compreensão básica que João tem do itinerário espiritual. João da Cruz está convicto de que fomos criados para possuir tudo, conhecer tudo, ser tudo, etc., mas também sabe que nunca teremos tudo se pedirmos a uma parte da criação de Deus que sacie estes desejos. O seu conselho de nada possuir para tudo possuir é um misterioso encorajamento para que nunca peçamos a qualquer coisa (uma qualquer parte da criação) que seja tudo. Só o que é nada pode ser o nosso Tudo.

 

Um ascetismo deste tipo pode parecer absurdo se não se entender que João se dirige a homens e a mulheres que fizeram a experiência na vida de percorrer os outros dois caminhos na procura da realização plena. Os seus corações meteram-se ao caminho à procura dos seus amores e viram-se enredados pela vida, com os corações partidos e divididos. Os conselhos de João são palavras de vida dirigidos às pessoas que morrem por falta de alimento. Ele aponta o caminho da vida aos peregrinos que se extraviaram.

 

A tarefa profética
 

Um escritor defendia que a vocação Carmelita é a de estar suspenso entre o céu e a terra, sem se poder apoiar em nenhum dos dois lugares. Esta é talvez uma forma excessiva de dizer que, em última análise, a nossa fé, a nossa confiança e a nossa esperança em Deus devem ser o nosso único apoio, e que Ele nos conduz muito para além das nossas construções terrenas e espirituais. No fim da sua vida, Teresa de Lisieux experimentou que a esperança do céu que a animou durante toda a sua vida ria-se dela. João da Cruz recordava as observações de S. Paulo: se já temos o que esperamos, já não é esperança; a esperança está no que não se possui.

 

A espiritualidade de João da Cruz foi descrita como uma contínua interpretação acerca da natureza de Deus.

 

Acaso esta nossa suspeita quanto às intenções e às construções humanas convertem os Carmelitas em cabeças duras? Ou, pelo contrário, permite-nos fazer uma crítica aguda do coração humano e da sua tendência para criar ídolos? Não será isto um serviço de libertação, que nos vai libertando de tudo o que nos escraviza e nos entrega nas mãos dos ídolos? Não é a crítica Carmelita talvez um desafio para não nos apegarmos a nada, para que nada se converta no centro da nossa vida, excepto o Mistério que paira sobre ela? E nesta pureza de coração, realmente só alcançada pela acção do Espírito de Deus, somos capazes de amar os outros de um modo justo e de viver sabiamente neste mundo. O desafio do Carmelo é o de colaborar com o amor de Deus, por vezes obscuro, que vivifica e cura.

 

Esta contínua vigilância, no meio de todas as palavras e estruturas que construímos, para advertir a aproximação de Deus, é uma obrigação profética do Carmelo. A que Deus seguimos? Os deuses das nossas dependências? Os deuses das ideologias ou das teologias limitadas? Os deuses da economia opressiva e dos sistemas políticos? Os deuses de todos os “ismos” do nosso tempo? Ou o nosso Deus é o Deus que transforma, cura, liberta, vivifica?

 

O Arcebispo Óscar Romero foi um clérigo tradicional, cuidadoso e estudioso. Era um homem bom, reservado, piedoso, orante. No entanto, a sua conversão aconteceu quando viu outro rosto de Cristo, um rosto algo diferente do Cristo da sua piedade, da sua oração e da sua teologia, um rosto algo diferente do Cristo familiar da hierarquia de El Salvador. Era o rosto de Cristo no rosto do povo de El Salvador; era o rosto de Cristo concretamente encarnado na história e projectado nas lutas do seu povo. Romero disse: “Aprendemos a ver o rosto de Cristo - o rosto de Cristo que é também o rosto do ser humano que sofre, o rosto do crucificado, o rosto do pobre, o rosto do santo e o rosto de cada pessoa - e amamos cada um deles com o mesmo critério com que seremos julgados: ´tive fome e deste-me de comer´.

 

Os ídolos do nosso tempo não são somente os amores pessoais e as possessões, mas são sobretudo os ídolos do poder, do prestígio, do controle e do domínio, que deixam a maior parte da humanidade excluída do banquete da vida. Romero comentou: A pessoa pobre é a que se converteu a Deus e põe n’Ele toda a sua fé, e a pessoa rica é a que não se converteu a Deus e põe a sua confiança nos ídolos: dinheiro, poder, bens materiais... O nosso trabalho deve orientar-se para nos convertermos a nós mesmos e a todo o povo a este autêntico significado da pobreza”.

 

Muitas das nossas províncias confrontaram-se com os ídolos do nosso tempo, através dos movimentos de libertação em várias regiões do mundo, como nas Filipinas, América Latina, América do Norte, África, Indonésia e Europa do Leste. Hoje em dia as desigualdades entre o norte e o sul apontam para os ídolos dos “ismos”, que mantêm a maior parte do mundo numa condição de marginalização.

 

Resumo

 

As fomes do nosso coração lançam-nos para o mundo à procura de alimento. De muitas maneiras perguntamos ao mundo: “Viste aquele que fez isto ao meu coração e o deixou penando”? O nosso coração encontra-se disperso e perdido, enquanto perguntamos a cada pessoa, a cada possessão e a cada actividade que nos digam algo mais acerca do Mistério que está no centro da nossa vida.

 

A alma apaixonada pelos mensageiros de Deus confunde-os com o próprio Deus. Tomamos as coisas boas criadas por Deus e pretendemos que sejam Deus. O coração, cansado de peregrinar, procura instalar-se e construir um lar. Põe os seus desejos mais profundos nas relações, nas possessões, nos planos, nas actividades, nas metas, e pede a tudo isto que sacie as fomes profundas. Porém, pretendemos demasiado deles e como não podem resistir às nossas expectativas começam a desmoronar-se. Os santos Carmelitas nunca se cansam de nos recordar que só Deus é o alimento suficiente para saciar as fomes do nosso coração.

 

 

Perguntas para reflexão
  1. Quais são os ídolos, as coisas intocáveis, que se tornaram parte da minha vida? Quais são as coisas sem as quais não posso continuar? Danifico-as por me apegar fortemente a elas?
  2. Onde e de que modo, na minha vida, me tornei numa pessoa sem liberdade? Sinto-me livre para seguir os meus desejos mais profundos? Sou livre para escutar o chamamento que Deus me faz para entrar no Seu futuro, ainda que não me pareça claro? Sou livre para escutar as necessidades da minha comunidade?
  3. Construí inconscientemente o meu próprio reino mais do que procurar o Reino de Deus? Sem me dar conta, afastei Deus do centro da minha vida e pus nesse centro os meus nobres objectivos, o meu trabalho profético, a minha compreensão das exigências do Reino? Ao longo dos anos tenho-me vindo a esquecer de perguntar: “O que é que Deus quer”?
  4. A paixão que me trouxe ao Carmelo foi domesticada ou foi-se desvanecendo? Converti-me numa pessoa compulsivamente activa, talvez sentindo-me mais como um funcionário de uma instituição do que como um discípulo do Senhor?
Continua