Da refeição em comum e da convivência estável (nn.º 7-8)

A Regra do Carmo

- Da refeição em comum e da convivência estável (nn.º 7-8) -

(6. Levando em consideração o conjunto do lugar que vocês se propuseram como moradia, cada um de vocês tenha uma cela individual e separada, que lhe será indicada por disposição do próprio prior e com o consen­timento dos outros irmãos ou da parte mais madura.)

7. De tal modo, porém, que, num refeitório comum, tomem o alimento que lhes for doado, ouvindo juntos alguma leitura da Sagrada Escritura, onde isto puder ser feito sem dificuldade.

8. A nenhum irmão será permitido, a não ser com a licença do prior em exercício, mudar-se do lugar que lhe foi indicado ou trocá-lo com outro.

Um pouco de história: sobre a refeição em comum e a proibição de mudar de lugar

O número 7 sobre o refeitório em comum foi acrescentado pelo Papa Inocêncio IV, em 1247. Este número reforça a dimensão fraterna da vida carmelitana e procura impedir o retorno para a vida puramente eremítica. Quatro pontos merecem atenção: (1) num refeitório comum, (2) comer o alimento que for doado, (3) ouvindo uma leitura da Bíblia, (4) onde comodamente puder ser observado.

O refeitorio comum - Lá no Monte Carmelo, os frades viviam espalhados pelas ladeiras da montanha. Cada um vivia sozinho, cozinhava sua comida e fazia as refeições na sua cela. O retorno para a Europa modifi­cou este jeito de morar, pois eles começaram a viver em conventos, onde todos moravam no mesmo prédio, em quartos ou celas separadas. Alguns queriam continuar como no Monte Carmelo: fazer sua comida no próprio quarto ou exigir que a comida preparada na cozinha lhes fosse levada para o quarto. A nova situação, porém, obrigou-os a ter uma cozinha única e um refeitório comum.

O alimento doado - A Regra diz: comam o alimento que lhes for doado. Esta afirmação revela que a comida era doa­da pelo povo. Ou seja, como os mendicantes, eles já viviam de esmolas. Naquele tempo, os men­dicantes andavam pelas cidades e anunciavam o evangelho aos "menores" (pobres). Em troca, o povo dava-lhes um pouco de comida. Alguns carmelitas, talvez sob o pretexto de fidelidade ao estilo de vida que tinham levado no Monte Carmelo, comiam o alimento doado no quarto e, portanto, não colocavam tudo em comum. Deste modo co­locavam em risco a fraternidade. Impondo o refeitório comum, o papa Inocêncio IV for­talece a vida em fraternidade e impede a volta para a vida eremítica afastada dos "menores".

Leitura da Bíblia durante a refeição - A novidade do refeitório em comum é acompanhada com a recomendação de ouvir uma leitura em comum da Sagrada Escritura. Pois, não só de pão vive o ser humano (Lc 4,4). Este conselho está em continuidade com a inspiração fundamental da Regra. Como ainda veremos mais adiante nos subsídios dos Círculos 6 e14, a Regra do Carmo insiste várias vezes na leitura e na meditação da Palavra de Deus. É o eixo do ideal da Vida Carmelitana.

Onde comodamente puder ser observado - Este tipo de ressalva aparece muitas vezes na Regra. Voltaremos a falar sobre isto no Círculo 22. Por ora, basta dizer o seguinte: a Regra tem um realismo impressionante que sabe relativizar o secundário, mas não abre mão do essencial.

O número 8 visa a convivência estável na comunidade. Aqui também tem vários pontos que pedem uma breve explicação:

Mudar de cela ou de lugar?  - O título que, em épocas mais recentes, tinha sido dado a este número 8, dizia: Sobre o não mudar nem trocar de cela. Pensava-se que este número proibisse aos frades mudar de cela ou de quar­to, dentro do convento, sem licença do prior. Mas a Regra não fala em cela, mas sim em lugar. Em latim se diz locus (lugar). Ora, a palavra locus não indicava a cela, o quarto, mas sim o convento, o lugar de moradia. Não se trata, portanto, da proibição de trocar de cela ou de quarto, mas sim da proibição de trocar de convento. Qual o sentido e o porquê desta proibição?

O costume antigo dos eremitas ambulantes - Escrevendo para o grupo dos primeiros carmelitas que moravam no Monte Carmelo, Alberto já previa que, no futuro, eles fossem fundar comunidades em outros lugares. Dizendo que não po­diam mudar de lugar de moradia sem licença do prior, ele tomava posição contra um costume dos eremitas antigos. (Na Regra, os carmelitas são chamados de eremitas). Na Palestina, desde muitos sé­culos, o costume dos antigos eremitas era de cada um estabelecer sua moradia no lugar, onde ele mesmo queria. Se em algum lugar houvesse um eremita conhecido de grande santidade, ele atraía muitos discípulos. Estes iam e vinham livremente, como e quando queriam, de acordo com o que cada um combinava com o mestre. Os eremitas antigos não criavam vínculo com a comunidade, mas só com o mestre ou guru a quem seguiam.

O compromisso do carmelita é com a comunidade - Os carmelitas do Monte Carmelo que foram falar com Alberto eram eremitas diferentes. Viviam em fraternidade. Eles tinham assumido um tipo de vida eremítica mais parecido com os mendicantes. Para impedir a volta ao eremitismo antigo, a Regra estabelece: Não é permitido a nenhum irmão, a não ser com licença do prior em exercício, mudar-se de lugar de moradia que lhe foi indicado ou trocá-lo com outro. Ou seja, não é permitido sair de uma comunidade e ir para outra, ou trocar com um frade de outra comunidade, sem licença do prior. O eremita carmelita devia renunciar à itinerância sem controle e submeter sua vida ao julgamento da comunidade, isto é, do coordenador e dos irmãos. O Prior devia zelar pela vida fraterna que poderia ser destruída por esse costume itinerante da vida eremítica.

Mendicantes e eremitas

Nos séculos XI e XII, a sociedade passava por uma crise profunda. As riquezas do feudalismo, funda­mentadas na posse de terra, começavam a ser superadas por uma nova riqueza feita de navios, comboios, comércio, capital. Surgia uma nova economia, mais urbana. O centro de gravidade se deslocava dos feudos e castelos dos senhores para os burgos e cidades dos novos ricos. A nova classe das corporações surgia como terceira classe social ao lado das duas já existentes. Havia os Maiores (a elite, proprietária das terras), e os Menores (o povo agregado, os pobres). A nova classe dos burgos (burguesia) era chamada de Medíocres (classe média). Quem mais sofria com a mudança social eram os Menores. Eles ficavam à deriva, abandonados, sem apoio.

No sistema do feudalismo, a Igreja era uma pedra fundamental no edifício social. Sociedade e Igreja eram como corpo e alma. A organização da Igreja, isto é, as dioceses e os mosteiros, imitava o modelo da sociedade envolvente. A vida religiosa estava concentrada nas grandes ordens monásticas. Os religiosos viviam nos seus mosteiros, que eram um mundo em si, autónomo e independente. Desta vida re­ligiosa não saía muito estímulo para a vivência do Evangelho.

Muitos leigos, em nome da fidelidade ao evangelho, procuravam novos caminhos para viver o evangelho na simplicidade. O povo buscava um contato mais direto com Deus e a sua Palavra. Esta reação começou a concretizar-se numa espécie de êxodo ou saída para o deserto, para a solidão. O que os animava era viver em obséquio de Jesus pobre na verdadeira pobreza e nudez. Eles rompiam com os senhores das terras. Já não serviam ao sistema. Exprimiam assim a sua vontade de dessolidarizar-se dos Maiores e de ficar ao lado dos Menores.

Desta mistura de fé, religião popular, política e cultura, surge um novo ideal polarizador: ir em peregrinação para a Terra Santa, recriar por lá em toda a sua pureza o Evangelho e, assim, imitar bem de perto, na própria terra de Jesus, a vida dos apóstolos. Francisco de Assis, António de Lisboa e muitos outros foram filhos do seu tempo, andando como peregrinos pobres em direção a Jerusalém. Tudo isto recebia o nome de "viver em obséquio de Jesus Cristo". Não queriam mais "viver em obséquio do senhor do castelo".

Surgia, assim, o fenómeno dos eremitas itinerantes ou romeiros, sem terra fixa, que viviam das esmolas recebidas do povo e em troca anunciavam o Evangelho. Eles interiorizavam o valor do abandono total a Deus, da vida pobre e marginalizada. Rompiam com o sistema da época e assumiam viver como e com os Menores. É dentro deste contexto social que surgiam os mendicantes, os "frades menores", as novas ordens religiosas, cuja espiritualidade acentuava a fraternidade e a itinerância. A fraternidade incluía a partilha dos bens e a vivência em comum do Evangelho. A itinerância incluía o testemunho e a pregação do evangelho. Uma destas novas Ordens vai ser a Ordem do Carmo.

Os primeiros Carmelitas, nossos confrades fundadores lá do Monte Carmelo, eram leigos. Como tantos outros, tinham vin­do da Europa para viver o Evangelho de maneira radical na Terra de Jesus. Eram romei­ros. Gente que se desinstalou, que não tinha nem queria ter terra fixa. Gente que tinha vendido tudo para poder com­prar o tesouro. É possível que alguns deles tenham sido ex-combatentes. Em oposição ao lu­xo e à aco­modação do clero e dos mosteiros, procuravam imitar Jesus pobre, numa vida de austeri­dade. Eram eremitas. Gente que dedicava grande parte do seu tempo à oração e à ruminação da Pala­vra de Deus. Dentro da sociedade eles se situavam não do lado dos grandes senhores, nem do lado dos mosteiros, mas sim do lado dos pobres, dos "menores". Muitos deles, antes de chegar ao Monte Car­melo, devem ter vivido da mendicância, pobres com o pobres. Expressavam assim o ideal comum de recriar um no­vo tipo de fraternidade. Nas suas andanças e romarias, eles anunciavam o Evangelho, recebendo em troca algo para comer e sobreviver. Apesar de serem chamados de eremitas, eles vi­viam em comu­nidade, pois, conforme informa Alberto na Regra, prometiam obediência ao irmão B. (Rc 1).

As características mendicantes dos primeiros carmelitas

Na época em que nasce, cresce e se organiza a Ordem do Carmo, os Mendicantes ainda não eram grupos bem organizados. Parecia mais um movimento em formação, mais ou menos como os novos instrumentos de pastoral de hoje. Desde o Vaticano II e sobretudo desde Medellin e Puebla, ocorreu uma evolução importante na Igreja Católica. Diante da situação dramática dos índios, criou-se o CIMI. Diante da situa­ção cada vez pior dos agricultores, criou-se a CPT. Diante da situação dos operários, criou-se a CPO. Diante da situação dos pescadores, criou-se a CPP. São in­strumentos novos de pastoral que ajudam estas classes e grupos de pes­soas a defender melhor sua vida, sua terra, seus direitos, sua identidade. Eles têm em comum o seguinte: surgiram por causa da fé renovada em Jesus e, como Jesus, defen­dem a vida, são ecuménicos, incomodam a sociedade estabelecida, provocam polémica. Algo semelhante acontecia no Século XII e XIII. Diante da situação dramática dos menores (pobres), surgiram os mendicantes como um Sinal dos Tempos. Procuravam ajudar os pobres a redescobrir a sua dignidade através do anúncio da Boa Nova de Deus que Jesus nos trouxe.

Os carmelitas, desde a sua mais remota origem, desde a carta de Alberto, escrita em 1207, possuem características que os colocam dentro deste movimento renovador que soprava na Igreja e que, aos poucos, ia desembocar na vida dos mendicantes. Eis a lista das principais características, das quais algumas já foram analisadas e outras ainda serão examinadas nos próximos círculos:

  1. Não ter abade, mas sim um prior a ser escolhido periodicamente entre os confrades (Rc 4).
  2. Não ter propriedade, mas possuir tudo em comum como os primeiros cristãos (Rc 12)
  3. Não mudar de lugar, como os eremitas andarilhos, mas comprometer-se com a comunidade (Rc 8).
  4. Novos candidatos devem ser acolhidos pelo prior através da comunidade (Rc 9)
  5. Todos são responsáveis pelo todo e pelo bem-estar de cada um (Rc 15)

Tudo isto revela a sabedoria de Alberto. Ele não só situa o grupo dos primeiros carmelitas dentro da grande tradição da Vida Religiosa que já vinha desde os Santos Padres dos primeiros séculos da Igreja, mas também os situa dentro do movimento renovador da Vida Religiosa da sua época, distinto tanto dos mosteiros tradicionais, como dos eremitas andarilhos, e que, aos poucos, ia sendo caracterizado como mendicante.

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