Domingo da Ascensão do Senhor - Ano A

DOMINGO DA ASCENSÃO  DO SENHOR (ANO A)

1 de Junho de 2014

 

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus (Mt 28, 16-20)

16Os onze discípulos partiram para a Galileia, para o monte que Jesus lhes tinha indicado. 17Quando o viram, adoraram-no; alguns, no entanto, ainda duvidavam. 18Aproximando-se deles, Jesus disse-lhes: «Foi-me dado todo o poder no Céu e na Terra. 19Ide, pois, fazei discípulos de todos os povos, baptizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, 20ensinando-os a cumprir tudo quanto vos tenho mandado. E sabei que Eu estarei sempre convosco até ao fim dos tempos.»

O contexto do Evangelho de Mateus

O Evangelho de Mateus, escrito por volta do ano 85, é dirigido a uma comunidade de judeus convertidos que viviam na Síria-Palestina. Passavam por uma profunda crise de identidade relativamente ao seu passado. Depois de terem aceitado Jesus como o Messias esperado, continuavam a frequentar a sinagoga e a observar a lei e as antigas tradições. Além disto, mantinham uma certa afinidade com os fariseus e, depois da revolta dos judeus da Palestina contra os romanos (65 a 72), eles e os fariseus foram os únicos grupos que sobreviveram à repressão romana.

A partir dos anos 80, estes irmãos judeus, fariseus e cristãos, únicos sobreviventes, começaram a lutar entre si pela posse das promessas do Antigo Testamento. Todos pretendiam ser os herdeiros. Pouco a pouco, começou a crescer a tensão entre eles e começaram a excomungarem-se mutuamente. Os cristãos ficaram proibidos de frequentar a sinagoga e ficaram confusos relativamente ao seu passado. Cada grupo começou a organizar-se ao seu próprio modo: os fariseus na sinagoga; os cristãos na Igreja. Isto agravou o problema da identidade das comunidades judeo-cristãs visto suscitar problemas muito sérios que requeriam uma resposta urgente: “As promessas da herança do Antigo Testamento a quem pertencem: à sinagoga ou à Igreja? Com quem está Deus? Qual é o verdadeiro povo de Deus?”.

Então Mateus escreve o seu Evangelho para ajudar estas comunidades a ultrapassar a crise e a encontrar uma resposta aos seus problemas. O seu Evangelho é fundamentalmente um Evangelho de revelação que pretende mostrar que Jesus é o verdadeiro Messias, o novo Moisés, no qual culmina toda a história do Antigo Testamento com as suas promessas. É também o Evangelho da consolação para todos aqueles que se sentiam excluídos e perseguidos pelos seus próprios irmãos judeus. Mateus quer consolá-los e ajudá-los a ultrapassar o trauma da ruptura. É o Evangelho da nova prática, visto indicar o caminho pelo qual se chega a uma nova justiça, maior do que a dos fariseus. É o Evangelho da abertura, pois indica que a Boa Nova de Deus que Jesus traz não pode permanecer escondida mas deve ser colocada no candelabro para que ilumine a vida de todos os povos.

Comentário do texto Mateus 28, 16-20

Mateus 28, 16: Voltando à Galileia. Tudo começou na Galileia (Mt 4, 12). Foi ali que os discípulos escutaram o primeiro chamamento (Mt 4, 15) e onde Jesus prometeu reuni-los de novo, depois da sua ressurreição (Mt 26, 31). Em Lucas, Jesus proíbe aos seus que saiam de Jerusalém (Act 1, 4). Em Mateus a ordem consiste em sair de Jerusalém e retornar à Galileia (Mt 28, 7.10). Cada evangelista tem o seu modo próprio de apresentar a pessoa de Jesus e o seu projecto. Para Lucas, depois da ressurreição de Jesus, o anúncio da Boa Nova deve começar em Jerusalém para, partindo dali, chegar a todos os confins da terra (Act 1, 8). Para Mateus o anúncio começa na Galileia dos pagãos (Mt 4, 15) para prefigurar deste modo a passagem dos judeus para os pagãos.

Os discípulos deveriam ir até à montanha que Jesus lhes indicara. A montanha evoca o Monte Sinai onde teve lugar a primeira Aliança e onde Moisés recebeu as tábuas da Lei de Deus (Ex 19 a 24; 34, 1-35). Evoca a montanha de Deus onde o profeta Elias se retirou para redescobrir o sentido da sua missão (1Re 19, 1-18). Evoca também a montanha da Transfiguração onde Moisés e Elias, isto é, a Lei e os Profetas, apareceram junto de Jesus, confirmando que Ele era o Messias prometido (Mt 17, 1-8).

Mateus 28, 17: Alguns duvidavam. Os primeiros cristãos tiveram muita dificuldade na hora de acreditar na Ressurreição. Os evangelistas insistem em contar-nos que duvidaram muito e que foram incrédulos perante a Ressurreição de Jesus (Mc 16, 11.13.14; Lc 24, 11.21.25.36.41; Jo 20, 25). A fé na Ressurreição foi fruto de um processo lento e difícil mas acabou por impor-se como a maior certeza dos cristãos.

Mateus 28, 18: Foi-me dado todo o poder no céu e na terra. A forma passiva do verbo indica que Jesus recebeu a sua autoridade do Pai. Mas em que consiste esta autoridade? No Apocalipse, o Cordeiro (Jesus ressuscitado) recebe da mão de Deus o livro com os sete selos (Ap 5, 7) e converte-se no Senhor da história, aquele que deve assumir a execução do projecto de Deus, descrito no livro selado, e como tal deve ser adorado por todas as criaturas (Ap 5, 11-14). Com a sua autoridade e o seu poder vence o Dragão, que é o poder do mal (Ap 12, 1-9) e captura a Besta e o falso profeta, símbolos do império romano (Ap 19, 20). No Credo da Missa dizemos que Jesus subiu ao céu e está sentado à direita de Deus Pai, convertendo-se deste modo em Juiz dos vivos e dos mortos.

Mateus 28, 19-20a: As últimas palavras de Jesus: três ordens aos discípulos. Revestido da suprema autoridade, Jesus transmite três ordens aos discípulos a a todos nós:

  1. Ide, pois, fazei discípulos de todos os povos;
  2. baptizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo;
  3. ensinando-os a cumprir tudo quanto vos tenho mandado.

Ide, pois, fazei discípulos de todos os povos. Ser discípulo não significa o mesmo que ser aluno. Um discípulo relaciona-se com um mestre. Um aluno relaciona-se com um professor. O discípulo vive junto ao mestre 24 horas por dia; o aluno recebe as aulas do professor durante algumas horas e volta para casa. O discipulado supõe comunidade. Ser aluno supõe unicamente participar numa aula. Naquele tempo, o discipulado costumava-se expressar com a frase Seguir o mestre. Na Regra do Carmelo diz-se: Viver em obséquio de Jesus Cristo. Para os primeiros cristãos, Seguir Jesus significava três coisas relacionadas entre si:

  • Imitar o exemplo do Mestre. Jesus era o modelo que se devia imitar e recriar na vida do discípulo e da discípula (Jo 13, 13-15). A convivência diária permitia uma contínua revisão. Nesta escola de Jesus ensinava-se uma única matéria: o Reino! E este Reino reconhecia-se na vida e na prática de Jesus.
  • Participar no destino do Mestre. Quem quisesse seguir Jesus devia comprometer-se com Ele: “Estar com ele nas tentações” (Lc 22, 28) e inclusivamente na perseguição (Jo 15, 20; Mt 10, 24-25). Devia estar pronto a carregar a cruz e a morrer com Ele (Mc 8, 34-35; Jo 11, 16).
  • Possuir em si a mesma vida de Jesus. Depois da Páscoa é acrescentada uma terceira dimensão: “Vivo, mas não sou eu que vivo, mas Cristo que vive em mim” (Gal 2, 20). Os primeiros cristãos procuraram identificar-se profundamente com Jesus. Trata-se de uma dimensão mística do seguimento de Jesus, fruto da acção do Espírito Santo.

Baptizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. A Trindade é ao mesmo tempo a fonte, o destino e o caminho. Quem foi baptizado em nome do Pai que nos foi revelado por Jesus, compromete-se a viver como irmão na fraternidade. E se Deus é Pai, todos nós somos irmãos e irmãs. Quem foi baptizado em nome do Filho que é Jesus, compromete-se a imitar Jesus e a segui-lo até à cruz para poder ressuscitar com Ele. E o poder que Jesus recebeu do Pai é um poder criador que vence a morte. E quem foi baptizado em nome do Espírito Santo que Jesus nos concedeu no dia de Pentecostes, compromete-se a interiorizar a fraternidade e o seguimento de Jesus, deixando-se conduzir pelo Espírito que permanece vivo na comunidade.

Ensinando-os a cumprir tudo quanto vos tenho mandado. Para o cristão, Jesus é a Nova Lei de Deus, proclamada do alto da montanha. Jesus foi escolhido pelo Pai como o novo Moisés, cuja palavra é Lei para nós: “Escutai-o” (Mt 17, 15). O Espírito enviado por Ele recorda-nos tudo o que Ele nos ensinou (Jo 14, 26; 16, 13). A observância da nova Lei do amor equilibra-se com a gratuitidade da presença de Jesus no meio de nós até ao fim dos tempos.

Mateus 28, 20b: E sabei que Eu estarei sempre convosco até ao fim dos tempos. Quando Moisés foi enviado para libertar o povo do Egipto, recebeu de Deus uma certeza, a única certeza que oferece uma total garantia: “Vai, Eu estarei contigo!” (Ex 3, 12). Esta mesma certeza foi dada aos profetas e a outras pessoas enviadas por Deus para desenvolverem uma missão importante relativa ao projecto de Deus (Jer 1, 8; Jz 6, 16). Maria recebeu a mesma certeza quando o anjo lhe disse: “O Senhor está contigo” (Lc 1, 28). Jesus, em pessoa, é a expressão viva desta certeza, porque o seu nome é Emanuel, Deus connosco (Mt 1, 23). Ele estará com os seus discípulos, com todos nós, até ao fim dos tempos. Aqui se manifesta a autoridade de Jesus. Ele controla o tempo e a história. Ele é o primeiro e o último (Ap 1, 17). Antes do primeiro nada existia e depois do último nada virá. Esta certeza é um apoio para nós, alimenta a nossa fé, sustém a esperança e gera o amor e a doação de nós mesmos.

Iluminando as palavras de Jesus: a missão universal da comunidade

Abraão foi chamado para ser fonte de bênção, não só para os seus próprios descendentes, mas também para todas as famílias da terra (Gen 12, 3). O povo da escravidão foi chamado, não só para restaurar as tribos de Jacob, mas também para ser luz das nações (Is 49, 6; 42, 6). O profeta Amós disse que Deus libertou não só Israel do Egipto, mas também os filisteus de Kaftor e os arameus de Quir (Am 9, 7). Deus, portanto, ocupa-se e preocupa-se, tanto dos israelitas como dos arameus e dos filisteus (que eram os maiores inimigos do povo de Israel!). O profeta Elias pensava que era o único defensor de Deus (1 Re 19, 10.14), mas teve que escutar que para além dele havia outros sete mil (1Re 18, 18). O profetas Jonas queria que Yahveh fosse Deus unicamente de Israel, mas teve que reconhecer que Ele é o Deus de todos os povos, inclusivamente dos habitantes de Nínive, os mais acérrimos inimigos de Israel (Jon 4, 1-11). No Novo Testamento, o discípulo João queria que Jesus fosse só do pequeno grupo, da comunidade, mas Jesus corrige-o e diz-lhe: “Quem não está contra nós, está connosco!” (Mc 9, 38-40).

No final do primeiro século depois de Cristo, as dificuldades e perseguições provavelmente conduziram as comunidades cristãs a perder alguma força missionária e a fecharem-se em si mesmas, como se fossem as únicas que defendessem os valores do Reino. Mas o Evangelho de Mateus, fiel a uma longa tradição de abertura aos povos, fez-lhes saber que as comunidades não podem encerrarem-se em si mesmas. Não podem pretender para si mesmas o monopólio da acção de Deus no mundo. Deus não é propriedade das comunidades mas as comunidades é que são propriedade de Deus (Ex 19, 5). No meio da humanidade que luta e resiste contra a opressão, as comunidades devem ser sal e fermento (Mt 5, 13; 13, 33). Devem fazer ressoar em todo o mundo, entre todas as nações, a Boa Nova que Jesus trouxe: Deus está presente no meio de nós! É o próprio Deus que, desde o Êxodo, se empenha em libertar os que dirigem para Ele o seu grito (Ex 3, 7-12). Esta é a sua missão. Se o sal perder o seu sabor para que serve? “Nem serve nem para a terra, nem para a estrumeira: deita-se fora!” (Lc 14, 35).