A Oração, porta da Contemplação

A ORAÇÃO, PORTA DA CONTEMPLAÇÃO

 

Código genético do carisma carmelita

Há quase cinquenta anos os conhecidos cientistas Francis Crick e James Watson descobriram a estrutura da molécula da herediatriedade e da vida, o ácido desoxirribonucleico (ADN), constituída por uma dupla hélice na qual cada cadeia é formada por um rosário de quatro bases, que se combinam entre si, formando como que uma espécie de “fecho éclair” perfeitamente ajustado.

Gostaria que este exemplo servisse para nos ajudar a descobrir o código genético que nos identifica como família religiosa. A Ratio Institutionis Vitae Carmelianae (RIVC) - documento carmelita que apresenta as grandes linhas de formação - chama contemplação a esta molécula da hereditariedade e da vida.

A contemplação é configurado por três elementos - oração, fraternidade e serviço no meio do povo - que, combinados, ajustam o “fecho éclair” da nossa vida. Nenhum pode faltar. Se algum deles não se ajustar bem aos outros, a nossa vida encrava e não é possível levá-la para cima.

O que é a contemplação? Na tradição carmelita contemplação e oração são dois conceitos que frequentementemente se identificaram. Contudo, é importante falar de maneira explícita da oração, que é a porta da contemplação. É difícil definir os contornos do termo e o começo de uma e de outra. Segundo a Ratio, não há uma perfeita equação entre oração e contemplação. É verdade que a oração é contemplação mas também não é menos verdade que a contemplação abrange, supera e é muito mais do que a oração. Em si mesma é um processo de transformação pessoal que, mediante o encontro com Jesus Cristo, nos impulsiona à conversão, a deixar o “homem velho” e a viver como “homem novo”. A purificação e a transformação tornam-se mais autênticas se estivermos dispostos a cooperar, pois a tarefa é árdua e dura toda a vida.

Pensemos na imagem de uma mulher que faz uma camisola. Quando está quase pronta repara que há um ponto errado. Que pode fazer? Pode deixá-la como está, com o ponto errado, ou remendá-la. Mas há outra solução possível - se bem que mais trabalhosa - que é desfazer o já feito até encontrar o ponto errado e depois acabar a obra começada.

Deus escolhe esta última solução, porque cada um de nós deve ser uma obra de arte acabada e perfeita. Voltar a fechar com cuidado o “fecho éclair” da nossa vida, supõe colocar adequadamente as peças que a constituem. Estas tentativas, idas e vindas, a espiritualidade carmelita descreve-as mediante símbolos e imagens que falam de um caminho de transformação: noite escura, subida ao monte Carmelo, puritas cordis (pureza de coração), vacare Deo (estar livres para Deus), experiência do deserto, cruz gloriosa, etc. Cada fase desfeita corresponde a cada uma das etapas da nossa vida, feita de alegrias e de crises, pelas quais temos de passar na procura de Deus.

Onde se dá a contemplação? Onde são transformadas as nossas formas limitadas de amar, pensar e agir? A contemplação acontece quando o amor se torna activo, quer na fraternidade, quer no serviço no meio do povo ou na oração. Outrora pensou-se que só era contemplativo quem fizesse actos de oração. Nada mais falso. Falamos muito de unidade de vida mas, porém, erguemos com facilidade muros entre cada um dos elementos do carisma. A unidade de vida não é simplesmente a soma dos tempos de oração, de fraternidade e de serviço no meio do povo. Cada uma das dimensões do carisma é portadora do código genético, isto é, do seu conjunto. A unidade de vida não é o resultado do tempo investido em cada um dos três elementos do carisma, mas o amor investido e derramado, o amor que nos vem de Deus e com que servimos os homens e os irmãos. Santa Teresa, na 5ª Exclamação, diz que “é o amor que dá valor a todas as obras”. “Deus não olha senão para o amor com que fazeis o que fazeis”. É-se contemplativo quando o amor se torna activo. A contemplação é o veículo que nos permite passar facilmente - sem bloqueios nem torres de Babel - de uma para outra dimensão do carisma (oração-fraternidade-serviço), como quem não muda de atitude, mas somente de forma de exprimir essa atitude permanente em que vive. O que não deve acontecer é o esquecimento de algum destes elementos ou a acentuação excessiva de um, anulando os outros. Só o amor perdura. Como diz São Paulo, tudo acabará: a ciência, a profecia, as línguas. A contemplação é um meio, não um fim em si mesmo. Embora a contemplação seja o veículo que facilita a unidade de vida, contudo é o amor que dá unidade e harmonia às diferentes e complementares formas de o exprimir e fomentar. Se o amor conduz a servir Cristo presente nos mais fracos, então somos contemplativos; se o amor permite ver o rosto de Deus nos irmãos da comunidade, então somos contemplativos; se o amor leva à intimidade com Ele na oração e a estar a sós com quem sabemos que nos ama, então somos contemplativos. É o AMOR - com maiúsculas - que dá unidade à variedade de formas com que se manifesta. Essa unidade, portanto, exprimir-se-á umas vezes de uma forma e outras vezes de outra.

A Ratio especifica que a contemplação é o coração do carisma. Sabemos, porém, que “o valor supremo do cristianismo não é a contemplação, mas o amor”. Para que os carmelitas de todos os tempos possam alcançar a união com Deus no amor, a contemplação é a enzima que possibilita e facilita em nós a reacção que activa a conversão. Para aprofundar isto que estamos a dizer a Ratio, durante a época do noviciado, recomenda a leitura do pequeno livro do Irmão Lourenço da Ressurreição Prática da presença de Deus. Um dia confessou: “No meio da confusão da cozinha, onde às vezes cada um me pede uma coisa ao mesmo tempo, possuo Deus com a mesma paz como se estivesse de joelhos diante do Santíssimo”.

Compreendeu que a “contemplação” o impulsionava a desejar viver dia e noite “na presença de Deus”, nas diversas formas que se lhe deparavam, sendo “consciente” do amor infinito de Deus. Por isso, anotará: “A nossa santificação consiste não na variedade das nossas obras, mas em fazer por Deus o que de ordinário fazemos por nós próprios... Eu estrelo os ovos na frigideira por amor de Deus... Procuramos métodos e mais métodos para aprender a amar Deus... Não seria mais fácil e directo fazê-lo tudo por amor de Deus, servir-se das obras do próprio estado para Lhe demonstrar o nosso amor e alimentar a Sua presença dentro de nós por meio de um trato cordial com Ele?”.

A dada altura da sua vida padeceu de gota ciática. Só podendo estar sentado por causa da doença, deram-lhe um martelo e nomearam-no sapateiro, sem que para tal tenha feito alguma aprendizagem. Levou no coração os duzentos pés dos seus irmãos. Foi um homem de oração, fraterno e serviçal, um contemplativo - tudo ao mesmo tempo -, porque o seu único meio para chegar a Deus era fazer tudo por amor a Ele, e era-lhe indiferente estar ocupado numa coisa ou noutra, desde que fosse feita por Deus: “Era para Ele que olhava e não para as coisas”.

A atitude contemplativa da nossa vida faz com que o homem e a mulher orantes sejam necessariamente fraternos e serviçais. Isto é, a oração remete obrigatoriamente para a fraternidade e para o serviço; a fraternidade conduz à oração e ao serviço e este, volta a remeter para a oração e para a fraternidade. Daqui se infere que, se um dos elementos do carisma se ressente, ressentir-se-ão indubitavelmente também os outros dois. Ou, por outras palavras, se ao tomar a temperatura à oração descubro que tenho febre, receio que a minha relação com os outros perigue e o meu serviço não goze de boa saúde.

Traços da oração

Não é difícil encontrar quem pense que a contemplação é coisa de freiras de clausura.  Nada mais errado. Já cansa ouvir falar da oposição entre vida activa e vida contemplativa como se fossem irreconciliáveis. São, sim, diferentes, mas a contemplação é essencial para as duas. Todos podemos chegar a ver e a sentir como Deus vê e sente. Que tem a ver aqui a oração? Na nossa tradição espiritual, a oração foi sempre a porta de entrada para este caminho de transformação. Partamos da descrição clássica de oração de Santa Teresa, mencionada na RIVC 31: “Alguns encontrei que acreditam estar no pensamento todo o negócio” (a substância da oração está em pensar muito, reflectir muito, aprofundar qualquer mistério teológico da fé). Ela desmarca-se disto e diz que “o aproveitamento da alma não está no pensar muito, mas no amar muito”. Aproxima-se assim daquilo que diz no capítulo 8 do Livro da Vida nº5: “que não é outra coisa a oração mental, sob o meu ponto de vista, senão tratar de amizade, estando a sós com quem sabemos que nos ama”. Ao falarmos da oração como amizade, o que temos de salientar em primeiro lugar é que a oração, antes de ser um acto, é uma atitude, uma forma de ser. Eu posso “fazer actos de natação” e não ser nadador; posso “fazer actos de oração” - praticar a oração - e não ser orante. Se depois de tantas horas de prática de oração (peguemos na calculadora e façamos contas!) ainda não passámos de praticantes de oração, é sinal de que algo de grave acontece. Talvez isto se deva ao facto de vivermos a oração, no melhor dos casos, como simples actos, quando ela é realmente uma forma de ser. Exige-o a amizade, que não pode ser praticada somente em alguns momentos. Ou se é amigo ou não se é.

Relação pessoal

A oração é, essencialmente, uma relação pessoal, dialógica, entre Deus e a criatura. Somos convidados a cuidar dela e a encontrar tempos e espaços para estar com o Senhor. A oração expressa-se em termos de relação pessoal e há nela Alguém que polariza a nossa existência. O que acrescenta a oração explícita - a oração acto - à oração como forma de ser? Simplesmente tomamos consciência da relação amorosa entre Deus e nós. Na oração descubro que Deus me ama, descubro que vivo essa relação, enquanto na vida activa é difícil muitas vezes estarmos conscientes disto devido ao ritmo frenético do nosso quotidiano.

Alguns afirmam, erradamente, que a amizade pressupõe tratar com um amigo vendo-o, tocando-o, ouvindo-o e que não podemos ter amizade com Deus porque é invisível. Aclaremos as coisas: que significa estar com Deus? A nossa relação com os outros é sempre e em primeiro lugar um acto de fé e, em segundo lugar, uma aceitação através dos sentidos. É preciso responder-lhes: “Tu, que vês dos outros? Se não acreditas no outro, que estúpida relação é essa que consideras ter com ele!”. A nossa relação com o próximo está baseada sempre na fé. Ou seja, o problema da fé é um problema humano antes que religioso. Tenho de dar um voto de confiança e credibilidade aos outros. Acredito que o padeiro não me quer envenenar quando põe nas minhas mãos um pedaço do seu pão; confio na sua bondade e, por isso, como-o sem receio algum. Acredito no médico que me vai operar, ainda que não tenha a certeza absoluta de que tudo vá correr bem. Acredito nele. O problema é, portanto, humano. Todos os sinais exteriores visíveis que posso ver com os olhos do corpo ou da inteligência são ambíguos e só deixam de o ser quando acredito. Assim é a oração: um acto de fé num ser pessoal que sei que não me vai envenenar.

Hão-de encontrar-se as condições

Vimos como a relação com Deus assenta na fé, tal como a ralação humana com os outros. Temos tendência a entender a oração - quem continua a praticá-la - como relação do nosso eu com os nossos sentimentos e ideias, com as nossas situações psicológicas, afectivas e religiosas. Porém, isto é a negação da oração. Ficar com os meus sentimentos, as minhas ideias, reflectir para, a seguir, descarregar a homilia aos outros, é negar a oração. A oração não sou eu e as minhas ideias, mas sim a relação com um Tu, Deus pessoal, que faz referência ao mistério da Trindade, para o precisar mais teologicamente. Caso contrário alteramos os papéis: o centro passa a ser o homem e Deus um satélite que gira à sua volta. Uma relação consolida-se e estabelece-se entre as pessoas que a procuram e nunca sobre os sentimentos que possam surgir entre elas nem sobre as ideias que se vão originando numa espécie de esgrima dialéctica. É preciso, em primeiro lugar, conhecer a condição de Deus e se, no início, quem começa a orar a desconhece, terá de ser ajudado com uma certa imagem de Deus que o ajude a tratar com Ele. Hão-de encontrar-se as condições. Tenho de saber qual é a condição de Deus. Um Deus com vontade de se derramar, amoroso, um Deus à procura de alguém para se entregar. Um Deus que doura as culpas. Esta é uma das expressões mais audazes de Santa Teresa: Deus “doura”, reveste de ouro, todas as nossas culpas. Ela apresenta uma imagem de Deus conforme se manifestou através de factos e de palavras. No capítulo 7, nº 19, do Livro da Vida, diz-nos uma frase cheia de sentimentos sobre a oração: “...com grandes dádivas ´castigáveis´ os meus delitos”.

Em segundo lugar, consiste em mostrar a nossa própria condição. Quem és tu? Temos uma habilidade surpreendente para contar mentiras a nós próprios e acreditar nelas, para viver constantemente numa eterna mentira existencial. São os outros que nos podem dizer, sem alterar a realidade, quem somos. Quando estamos diante de Deus em oração, conhecemo-nos melhor a nós próprios. O ser humano procura ser amado incondicionalmente e infinitamente, mas só Deus pode dar-lhe esse amor que anseia. A estratégia seguida normalmente pelo nosso “homem velho” é sempre igual, embora a ignoremos: esgotar todos os bens e possibilidades de que dispomos. Quando secamos o nosso poço e os nossos meios de subsistência, então vamos à procura do poço do irmão, e depois de o esgotarmos, buscamos o da família, o de um amigo, etc. E assim, sucessivamente, como os camelos, sugamos a vida dos outros e armazenamos nas nossas bossas tudo o que encontramos. A condição humana é insaciável. É uma caverna profunda de sentido que não se enche senão com o infinito. Deus, nosso centro e nosso infinito, é o único interlocutor capaz de satisfazer as exigências do homem.

A oração ajuda-nos a iluminar e a ordenar a vida de modo a localizar o nosso centro

A desordem é o grande problema da nossa existência. A oração ajuda-nos a discernir o modo de arrumar a nossa vida e como encaixar o quebra-cabeças gigante da nossa história. Ao mesmo tempo, a oração torna-nos conscientes de viver na presença de Deus. É no mais profundo do nosso ser que Ele mora. Quando nos dispomos a olhar para a nossa vida descobrimos que só Deus encaixa bem no nosso centro. E ao tentarmos invadir esse centro com outras coisas que não são Deus, então acontecem os desajustes e andamos descentrados e desorientados. É no mais oculto da nossa cela que, em solidão e silêncio, estabelecemos a luta contra o “homem velho” e o diálogo com Deus. Começamos a reconhecer as nossas elaboradas fachadas construídas ao longo de muitos anos. A oração é a procura da peça que falta na nossa vida: Deus, sem invólucros, nem cascas. Somente Deus e não o Deus tapa buracos que construímos para nos servir. Deste modo explicam-se todos os desajustes, que muitos tentam solucionar com visitas ao psicólogo, dramas existenciais e ontológicos, por não se viver no centro que nos corresponde como pessoas e como criaturas. Permanece-se num estado de violência, que se torna mais forte conforme nos afastamos desse centro.

A gratuidade

Será que a amizade pode ser de outra forma? A experiência da gratuidade é fundamental para a fé cristã. Percorremos muitos mais quilómetros do que Jesus Cristo; falámos, escrevemos e ouvimos muitas mais pessoas do que Ele. Fazer, fazer... fizemos mais do que Ele! Mas a eficácia da vida de Jesus não está no que fez - que é pouco - mas na gratuidade com que o fez e viveu. A eficácia não está na Sua morte dolorosa e crucificada. Ter-nos-ia igualmente redimido se tivesse morrido no melhor colchão “Colunex” da melhor fábrica de móveis. Não é o facto de ter morrido na cruz que nos redime, mas sim quem morreu nela. Outros também lá morreram. Precisamente junto a Ele havia dois condenados, e nenhum deles nos salvou. Salvou-nos pela sua entrega generosa e gratuita. Não se pode de falar de êxito ou de aparente utilidade. Do mesmo modo, quando ficamos a sós e em silêncio - o que procuramos evitar - os minutos parecem semanas. Bastaria que fizéssemos a experiência de deixar o relógio, ou bastaria que experimentássemos estar às escuras e acender a luz depois de algum tempo. Se nos perguntarem quanto tempo imaginamos que estivemos em oração, seguramente que exageraríamos na avaliação do tempo; se estivemos cinco, diríamos que estivemos vinte e cinco ou trinta, porque nos parecem eternidades. Isto é indício de que nos custa viver no silêncio. Sempre que fazemos algo o tempo passa a voar. Que significa isto senão que olhamos e contemplamos quase tudo segundo o prisma da utilidade? Mas na oração não é a categoria da utilidade que a define, bem pelo contrário. A oração nestes termos é inútil. E é precisamente aí que está a sua eficácia. Como a amizade é inútil. Tomaríamos como ofensa se alguém nos dissesse: “Olha, a tua amizade para mim é muito útil”. Provavelmente responderíamos deste modo: “Compra um cão que te entretenha. Corrige a tua linguagem, se é que estás a ser sincero com o teu íntimo, porque me feres. Se me queres, não me queiras por interesse”.

A oração é o espelho onde se reflecte como é a minha vida fraterna

Ao levantar as nossas mãos para Deus logo na oração da manhã, Deus encontrou-as limpas ou manchadas de sangue pelo juízo e pela murmuração contra os outros? É fácil passar ao lado desta pergunta e julgá-la ingénua e inoportuna; mas se queremos rezar, o primeiro requisito é descer à vida concreta e viver na “verdade” começando por nós mesmos, que é onde se realiza o processo de transformação. A oração, que quase sempre consideramos relacionada com o sentido do “ouvido” e da “escuta”, aparece na Sagrada Escritura com interessantes matizes visuais. Deus, durante a nossa oração, antes de “escutar”, olha. Deus recorda ao povo, através do profeta Isaías, que as suas orações não lhe são agradáveis porque olhou e viu as mãos manchadas de sangue e um coração com duplicidade. “Quando levantais as vossas mãos, afasto de vós os meus olhos; podeis multiplicar as vossas preces, que Eu não as atendo” (Is 1, 17). Deus fica enredado em salmos que se repetem vertiginosamente mas que, por isso mesmo, perderam a sua eficácia. Oferecemos a Deus - como dirá São João da Cruz - o que nunca nos pediu. Estabelecemos um perigoso diálogo de um “eu desdobrado” que fala e responde a si próprio mas que não tem Deus como interlocutor. Marta e Maria nunca devem actuar juntas. O interior manifesta-se no exterior. Podemos multiplicar actos e mais actos na comunidade, em casa ou na igreja da nossa paróquia e não rezar. O nosso Geral ao iniciar o seu mandato dizia: “Se queres saber se amas a Deus pergunta aos teus irmãos e eles dir-te-ão”. O trato com Deus conduz a estar com os irmãos. O trato de amizade com Deus não consiste em pensar muito mas em amar muito. E amar não se pode fazer em abstracto. Deus disfarça-se camaleonicamente de homem e mulher. É no encontro com eles que se ama. Quando a oração se ressente, acende-se a luz vermelha da fraternidade. A oração, o silêncio, não é isolamento mas enchendo-se da Presença de Deus mostra-nos transformadora a companhia dos irmãos. “Quando vejo algumas muito diligentes em entender a oração que têm, e muito encapotadas quando estão nela, que parece não ousam bulir nem menear o pensamento, para que não se lhes vá um pouquito do gosto e devoção que tiveram, faz-me ver quão pouco entendem do caminho por onde se alcança a união. E pensam que ali está todo o negócio. Mas não, irmãs, não; obras quer o Senhor; e se vês uma enferma a quem podes dar algum alívio, não se te dê nada de perder essa devoção e te compadeças dela; e se tem alguma dor, te doa a ti também; e se for preciso, jejua, para que ela coma, não tanto por ela, mas porque sabes que o teu Senhor quer isso” (Santa Teresa de Jesus).

A oração é o espelho onde se reflecte como é o meu serviço

A oração é frágua de testemunhos, de apóstolos, de enviados, porque na oração advertem-se possíveis desvios egoístas da missão. A oração é como um momento de iluminação. Assim como onde entra a luz não pode haver teia de aranha oculta, do mesmo modo numa pessoa orante dá-se a iluminação dos desvios egoístas do serviço. Como nem tudo o que reluz é ouro do mesmo modo dá a impressão que nem tudo o que se faz é apostolado. O apóstolo não pode arrogar-se nenhum crescimento do Evangelho. É Deus quem dá o incremento. O homem não pode ir pela vida fazendo de super apóstolo, eclipsando a acção de Deus. O super apóstolo edifica sobre os seus próprios ombros de modo que quando desaparece, com ele desaparece também a sua obra. Não podemos ser super homens que inclusivamente obscurecem, obstaculizam e se interpõem entre Cristo e os destinatários do Seu anúncio. Devemos passar em bicos de pés pela vida daqueles a quem Deus nos envia e que tanto ama (os pobres, os que sofrem a injustiça e a guerra, as famílias desfeitas, etc.), sem demasiados pavoneios. A oração torna-nos equilibrados e questiona-nos mil vezes sobre o que fazemos. O carmelita não faz caridade sem se perguntar: “Por que existe esta injustiça pela qual me vejo impulsionado por Deus a fazer isto?”. O carmelita não dá uma aula aos seus alunos sem antes se perguntar: “Que devem estas crianças aprender para que possam dar uma resposta inteligente a partir da fé aos desafios que lhes são colocados pela cultura, a política, a economia, frente à vida, à morte, à doença, etc.?”. Um carmelita não se dedica a curar os seus doentes sem antes se questionar: “Onde radica verdadeiramente o sofrimento do homem? Que dar a esta mulher enferma, destruída por um cancro? Somente uma injecção de morfina?”. Um carmelita não faz nada sem antes “contemplar” a razão, as consequências, a contribuição que pode dar para apressar a vinda do Reino de Deus.

Que é a oração? A oração torna-nos homens e mulheres sábios com capacidade de discernimento. A oração dá-nos equilíbrio. O conflito aparece quando queremos tornar a nossa vida num arrecadação onde tudo cabe e vale, e a oração fica desterrada como parte de um horário e uma prática de recitação de palavras e mais palavras. A oração por excelência acontece quando até as nossas próprias palavras ficam suspensas, como dois namorados que se olham, bastando unicamente a presença e o silêncio mútuo. Nas nossas orações, com tantas histórias inventadas, sufocamos o que Deus nos possa querer dizer. Os nossos santos diziam que quando alguém se acercar do fogo da oração não deve deitar troncos e mais troncos (os nossos discursos, as nossas histórias sem interesse) pois asfixia o lume, mas antes palhinhas, actos simples de louvor, que avivem sempre o lume e conduzam à infância espiritual.

O nosso carisma contemplativo entendido como amizade íntima com Deus que afecta todas as dimensões da nossa vida é o código genético que nos identifica como carmelitas e convém cuidar dele fielmente, especialmente hoje que outros cantos de sereia podem causar o esquecimento do nosso tesouro. A seguinte história é bastante esclarecedora a este respeito.  “Disse o Rabi Meir: ‘Se alguém se torna rabino deve ter todas as coisas necessárias como uma escola, salões, mesas e cadeiras. Um dos seus discípulos fica com o encargo da administração, outro com o do mantimento, e assim sucessivamente. Quando tudo isto está disponível vem então o diabo e rompe o coração. Tudo permanece como dantes, a roda continua a girar, mas o coração já não está aí. E o rabino levantou a voz e disse: ‘Deus, ajuda-nos para que não permitamos que isto aconteça’

Que nos tirem o que quiserem, as casas, as propriedades, as escolas, as paróquias, o que Deus quiser, mas que não nos roubem o coração, o que nos faz ser, a molécula da hereditariedade e da vida, a contemplação.

Desiderio Martinez, O. Carm.