A minha paralisia

IV - A MINHA PARALISIA

Fiquei, destes quatro dias de paroxismo, num estado que só o Senhor pode saber os incomportáveis tormentos que sentia em mim: a língua feita em pedaços de mordida; a garganta, de não ter passado nada e da grande fraqueza, sufocava-me, pois nem a água podia engolir; toda eu parecia estar desconjuntada; com grandíssimo desatino na cabeça. Toda encolhida, feita um novelo – que nisto parou o tormento daqueles dias – sem me poder mexer, nem braço, nem pé, nem mão, nem cabeça, mais do que se estivesse morta, se não me maneassem. Só um dedo me parece podia mexer da mão direita. Chegarem-se a mim não havia como, porque tudo estava em tal lástima, que não o podia suportar; num lençol, uma a uma ponta, e outra a outra, me meneavam.

Isto foi até à Páscoa Florida. Só tinha que, se não se chegassem a mim, as dores cessavam muitas vezes e, a troco de descansar um pouco, já me tinha por boa, pois temia de me vir a faltar a paciência. Assim fiquei muito contente de me ver sem tão agudas e contínuas dores, embora, nos grandes frios de quartãs dobradas – fortíssimas – com que fiquei, as tivesse incomportáveis. O fastio era muito grande. 

Dei-me logo tanta pressa em ir para o convento, que mesmo assim me fiz levar. A que esperavam morta, receberam com alma, mas o corpo pior que morto, a causar pena vê-lo. O extremo de fraqueza nem se pode dizer, que já só tinha ossos. Digo que o ficar assim durou-me mais de oito meses; o estar tolhida, ainda que fosse melhorando, quase três anos. Quando comecei a andar de gatas, louvava a Deus. Tudo sofri com grande conformidade e – a não ser nestes tempos – com grande alegria; porque tudo se me fazia nada, comparado com as dores e os tormentos do princípio. Estava muito conformada com a vontade de Deus, ainda mesmo que me deixasse sempre assim. 

Parece-me que toda a minha ânsia de sarar era para estar a sós em oração – como me tinham ensinado – porque na enfermaria não havia disposição para isso. Confessava-me muito a miúdo; tratava muito de Deus, de maneira que edificava a todas. Espantavam-se da paciência que o Senhor me dava; porque, a não vir da mão de Sua Majestade, parecia impossível poder-se sofrer tantos males com tanto contentamento. 

Grande coisa foi Ele haver-me feito a mercê que me fizera na oração. Esta fazia-me entender que coisa era amá-l’O. Só desse pouco tempo vi em mim novas virtudes, embora não fortes, pois não bastaram para me sustentar no caminho da justiça. Não dizer mal de ninguém, por pouco que fosse, antes o ordinário era em mim o desculpar toda a murmuração, porque trazia muito diante dos olhos como não havia de dizer nem querer que dissessem de outra pessoa o que eu não quereria dissessem de mim. Praticava isto com grande extremo nas ocasiões que para isso havia, embora não tão perfeitamente que algumas vezes, quando mas davam grandes, não quebrantasse um pouco; mas de ordinário era isto. Assim – às que estavam comigo e me tratavam – persuadi tanto disto que lhes ficou de costume. E todas vieram a entender, que onde eu estivesse, seguras tinham as costas. E o mesmo pensavam daquelas com quem eu tinha amizade e parentesco e que ensinava, ainda que noutras coisas bem tenha que dar contas a Deus do mau exemplo que lhes dava. 

Ficou-me o desejo da solidão; amiga de tratar e falar de Deus que, se eu encontrava com quem, mais contento e recreação me dava que toda a delicadeza – ou grosseria, para melhor dizer – da conversação do mundo. Comungar e confessar-me muito mais amiúde e desejá-lo; amicíssima de ler bons livros; um enorme arrependimento em ter ofendido a Deus que, muitas vezes me recordo não ousava ter oração porque temia – como a um grande castigo – a grandíssima pena que havia de sentir de O ter ofendido. Isto foi-me depois crescendo em tal extremo, que não sei a que compare este tormento. E jamais foi – nem pouco nem muito – por temor; mas, como me lembrava dos contentamentos que o Senhor me dava na oração e o muito que Lhe devia e via quão mal O pagava, não o podia sofrer. Incomodava-me em extremo as muitas lágrimas que pela culpa chorava, quando via a minha pouca emenda, pois nem bastavam determinações nem a mágoa em que me via, para não voltar a cair quando me punha na ocasião. Pareciam-me ser lágrimas enganosas e ser depois maior a culpa, porque via a grande mercê que me fazia o Senhor em mas dar com tão grande arrependimento. Procurava confessar-me dentre em breve e, a meu parecer, fazia da minha parte o que podia para voltar a estar em graça. 

Todos estes sinais de temor de Deus me vieram com a oração e o maior era o ir envolvido em amor, porque não se me punha diante o castigo. Todo o tempo que estive tão mal me durou a muita guarda de consciência quanto a pecados mortais. Oh! valha-me Deus; desejava saúde para mais O servir e foi causa de todo o meu mal! 

Pois Ele procedeu como quem é, fazendo com que me pudesse levantar e andar e não ficasse tolhida, e eu, como quem sou, usando mal desta mercê (V 6,1-4.8).

Santa Teresa de Jesus

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