Da luta diária e das armas espirituais (1) (nnº 18-19)

A Regra do Carmo

- Da luta diária e das armas espirituais (1) (nn.º 18-19) -

18. Visto que a vida humana na terra é uma tentação, e todos os que querem viver fielmente em Cristo sofrem perseguição, e como o seu adversário, o diabo, rodeia por aí como um leão que ruge, espreitando a quem devorar, procurem, com toda a diligência, revestir-se da armadura de Deus, para que possam resistir às embosca­das do inimigo.

19. Os rins devem ser cingidos com o cíngulo da castidade, o peito protegido por pensamentos santos, pois está escrito: O pensamento santo te guardará. A couraça da justiça deve ser usada como veste, a fim de que vocês amem o Senhor com todo o coração, com toda a alma e com todas as forças, e o próximo como a si mesmos. Sempre e em tudo deve ser empunhado o escudo da fé, com o qual possam apagar todas as flechas incendiárias do maligno, pois sem a fé é impossível agradar a Deus. O capacete da salvação deve ser colocado sobre a cabeça, para que esperem a salvação unicamente do Salvador, pois é ele que libertará o seu povo dos pecados. E que a espada do Espírito, que é a Palavra de Deus, habite abundantemente em sua boca e em seus corações, e tudo que vocês tiverem de fazer, seja lá o que for, que seja feito na Palavra do Senhor.

Um pouco de história: a Tradição dos Santos Padres na Regra do Carmo

Se os números 10 a 15 são considerados o coração da Regra, então os números 18 a 21 devem ser vistos como o sangue da Regra. Eles tratam de três assuntos muito importantes e atuais: 1) A luta e as armas espirituas (Rc 18 e 19), 2) o trabalho e o sustento (Rc 20), 3) o silêncio e o esvaziamento para Deus (Rc 21). Estes três assuntos ocupam praticamente uma terça parte da Regra.

É sobretudo nestes números de 18 a 21 que está condensada e concentrada a riqueza da tradição eremítica e monacal. Neles temos a confluência de dois rios: o rio antigo da tradição e o rio novo da vida religiosa mendicante. Ou melhor, nestes números, a água da mais pura tradição eremítica passa a correr dentro do novo leito da Vida Religiosa Mendicante, e, assim, é colocada a serviço da Igreja que se renovava buscando servir aos "menores" (pobres).

Nestes números 18 e 19 há dois aspectos da tradição que merecem uma atenção maior: o uso da Bíblia e a retomada de um elemento importante das origens do monaquismo:

O uso da Bíblia

Os números 18 a 21 são uma colcha de retalhos de textos bíblicos, do começo ao fim. Sobre o uso da Bíblia na Regra do Carmo já refletimos no Subsídio do 6º Círculo, e ainda iremos refletir mais detalhadamente no Subsídio do 14º Círculo.

Importante é notar que os números 18 e 19, emprestando a frase de Paulo aos Efésios, colocam toda a vida carmelitana em termos de luta e de combate sem trégua. Isto nos leva ao segundo aspecto da Tradição.

A retomada das origens do monaquismo

Conforme a tradição antiga, a vida religiosa nasceu do desejo de lutar contra o poder do mal, contra as forças da morte, contra satanás.  No seu livro sobre a vida de Santo Antão, o pri­meiro monge, Santo Atanásio (século IV) diz que o motivo que levou Antão a abandonar tudo e fazer-se monge foi o desejo de lutar contra o diabo.

Ele conta que Antão abandonou a cidade, onde, conforme se pensava, o evangelho já tinha penetrado, e foi para o de­serto, onde, como se dizia, o domínio do poder do mal, do demónio, ainda perdurava. E lá no deserto, ele foi morar num antigo sepulcro, o lugar da morte. Pois era na morte que o diabo manifestava todo o seu poder. É lá que Antão decide enfrentá-lo e vencê-lo, apoiado na graça que lhe vem da sua inserção no processo da paixão, morte e ressurreição de Jesus.

Esta tradição antiga da luta contra o poder do mal, vinda desde a mais remota origem da vida religiosa, desemboca aqui na Regra do Carmo, onde se fala da luta a ser travada contra o satanás (Rc 18), contra o poder do mal. Revestido com a armadura de Deus, o carmelita, a carmelita, poderá vencê-lo.

A dimensão da luta que nos é proposta

Nos números 18 e 19, articulam-se três partes:

  1. A condição humana como tentação, perseguição e assalto, que exige luta da nossa parte (Rc 18).
  2. A primeira fase da luta, que visa o controle do sentimento e do pensamento (Rc 19).
  3. A fase decisiva da luta, em que as armas nos são dadas por Deus: fé, esperança e amor (Rc 19).

Para descrever a situação de tentação, de perseguição e de assalto, a Regra usa frases tira­das da Bíblia ou nela inspiradas:

  • A vida humana sobre a terra como tentação, luta ou provação: vem do livro de Job na tradução latina da vulgata (Job 7,1).
  • Todos os que querem viver piedosamente em Cristo sofrem perseguição: vem da segunda carta de Paulo a Timóteo (2Tm 3,12).
  • O diabo como um leão que nos rodeia querendo assaltar: vem da primeira carta de Pedro (1Pd 5,8).

Tentação, perseguição, assalto! É um crescendo. A tentação se transforma em perseguição, e a perseguição em assalto! Na medida em que se leva a sério o compromisso com o evangelho, as dificul­dades aparecem e crescem, tanto as de fora, como as de dentro.

Em seguida, a Regra traz a recomendação para o carmelita revestir-se com a armadura de Deus. Ela diz: Por isso, com todo cuidado procurem revestir-se da armadura de Deus, para que possam resistir às emboscadas do inimigo.  Esta frase é uma citação abreviada de um trecho da carta de São Paulo aos Efésios, onde Paulo coloca a luta em termos bem mais amplos. O texto de Paulo ajuda a entender melhor todo o alcance daquilo que a Regra entende por tentação, perseguição e assalto do diabo. Paulo diz: Vocês devem vestir a armadura de Deus para poderem resistir às manobras do diabo. A nossa luta, de fato, não é contra homens de carne e osso, mas contra os Principados e as Autoridades, contra os Dominadores deste mundo de trevas, contra os Espíritos do mal, que habitam as regiões celestes (Ef 6,11-12).

Nesta frase, Paulo alude à situação concreta do mundo e do sistema, em que ele, Paulo, e as comuni­dades da época estavam vivendo. Era o mundo do império romano com seus ídolos, a sua ideologia, que dominavam todos os aspectos da vida humana (cf. Ap 13,15-17). Não se trata, portanto, de uma luta só individual em vista da santificação pessoal. A santificação pessoal, a luta interior pessoal, é uma parte da luta mais ampla contra as forças malignas que atentam contra a vida humana; forças que perseguem e assaltam, dividem e matam. Paulo não espiritualiza a luta, mas procura situá-la no concreto da história. A dimensão da luta que nos é proposta na Regra é a mais ampla possível. 

Vivendo aqui na América Latina, devemos reler tudo isto à luz do que acontece hoje neste nosso Continente. A Regra une luta pessoal e luta coletiva, luta interior e luta exterior. A santificação pessoal não pode ser separada da vida do povo e da Igreja. No passado, tudo isto foi muito espiritualizado, reduzido ao tamanho do esforço individual de santificação, sem levar em conta o sistema iníquo que nos envolve e condiciona. Entrando em contato com a realidade concreta do povo pobre de hoje, reencontramos o ângulo a partir do qual foi escrita a Regra. Reencontramos o chão para poder reler a Regra e entendê-la do jeito que foi entendida e rascunhada pelos primeiros carmelitas, formulada e escrita por Alberto, atualizada e aprovada por Inocêncio IV.

É importante saber harmonizar as duas lutas: interior e exterior, pessoal e social. Às vezes, as pessoas se desintegram, porque não dão atenção suficiente ao que se passa ao seu redor. Outras vezes, porque não dão atenção suficiente ao que se passa dentro delas mesmas. Não chegam a uma entrega madura, porque não se possuem a si mesmos. A primeira luta a ser enfrentada é aceitar-se a si mesmo com todas as limitações, por mais dolorosas que sejam. Do contrário, a pessoa pode fracassar na luta e ser causa do fracasso de muitos outros. A história tem exemplos disso (cf 2Sm 11,2-24). Um conflito pessoal bem vivido nunca é só pessoal. O profeta Elias viveu um conflito pessoal muito grande (1Rs 19,1-11). Viveu na própria pele o conflito do seu povo. Quando encontrou a solução para si, encontrou-a também para o povo. A vida pessoal deve ser uma amostra daquilo que a pessoa quer realizar para os outros.

A condição humana e as armas da luta 

Conforme a Regra, são três as características da condição humana que motivam a luta:

  • A vida na terra é uma tentação; 
  • A vida em Cristo traz perseguição;
  • Cêrco e assalto a partir do diabo que é como um leão que devora.

Tentação - A vida humana, pelo fato de ser vida, é ameaçada de morte. Por dentro e por fora, a vida é tentada a entrar por caminhos que levam à "não-vida", a se des-humanizar. Pelo fato de você termos vida sofremos a tentação da não-vida. São muitos e variados os atenta­dos contra a dignidade da vida. A morte nos espreita de muitas maneiras, sobretudo hoje, aqui na América Latina. Jesus também foi tentado, mas ele lutou, usando a Palavra de Deus, a fim de não cair na tentação (Mt 4,1-11). Ele venceu e nos diz: "Coragem! Eu venci o mundo!" (Jo 16,33)

Perseguição - Quem assume viver conforme Jesus viveu, não só será tentado, mas, como Jesus, também será perseguido (2 Tim 3,12). A perseguição é uma consequência normal da vivên­cia do Evangelho, pois as trevas se defendem contra a luz (Jo 3,19-21). Uma pessoa honesta, pelo simples fato de ser honesta, incomoda o desonesto e será por ele perseguida (Sab 2,12-14). Jesus também foi perseguido, e ele predisse o mesmo destino para os seus discípulos (Jo 15,18-21; 16,2-4).

Assalto - A Regra vê os fatos com os olhos da época. Tudo que é mal ou maldade, as más inclinações e as tentações, tudo é visto como ataque ou assalto do adversário que é o diabo. A palavra diabo vem do grego dia-ballo. Significa dividir. São as forças que causam divisão e, assim, desarticulam a ação que se faz em defesa do bem e da vida. Este adversário usa de "manobras", usa "flechas incendiárias" e é "nequíssimo". Não se pode confiar nele. O demônio perseguiu o próprio Jesus de muitas maneiras. (Lc 4,1-13; 22,3.53; Jo 13,2-27).

As armas da primeira fase da luta são duas: cinto e colete. Elas dizem respeito à purificação dos sentimentos e dos pensamentos. Na espiritualidade carmelitana, se fala da Noite Escura dos sentidos, pela qual deve­mos passar para poder chegar à intimidade com Deus e, assim, contribuir para a construção do Reino:

Cinto de castidade nos rins (Ef 6,14) - Visa a purificação e o controle dos sentimentos mais profundos e mais íntimos (rins). É para não virar joguete de estímulos e tendências contraditórias que surgem dentro de nós. Ajuda a adquirir um auto-domínio e um equilíbrio interior.

Colete do pensamento santo para o peito (Prov 2,11) - Na época de Alberto, se dizia que o pensamento santo nasce da leitura do Livro Santo, isto é, da Sagrada Escritura. O colete do pensamento santo a ser usado para fortalecer o peito é a leitura orante diária da Bíblia. O peito indica o centro dos anseios e dos pensamentos. O pensamento santo te conservará. Visa o controle da mente e do pensamento no sentido de ajudar a adquirir uma visão crítica do que acontece no mundo e de não seguir qualquer vento.

Tudo isto suscita sérias perguntas. Como se concretiza para nós, aqui no Brasil, no século XXI, a tentação, a perseguição e o assalto que devora? Como nós carmelitas participamos da luta do povo que enfrenta, diariamente, a tentação, a perseguição e o assalto? Será que não vivemos demasiadamente afastados da realidade do dia-a-dia do povo? Será que não nos fechamos dentro de uma luta espiritualista e intimista? Será que não valeria a pena olhar mais de perto o testemunho do grupo fundador da nossa família carmelitana? Aquilo que eles fizeram no seu tempo, é fonte de inspiração para nós hoje! Não foi sem motivo que Alberto usou as palavras tentação, perseguição e assalto para caracterizar a condição humana.

Carlos Mesters, O. Carm.

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