Três traços do perfil espiritual de São Nuno

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Nuno, Santo da Eucaristia


Um dos traços que sobressaem do perfil espiritual de São Nuno é a sua profunda piedade eucarística. Indubitavelmente, esta piedade aconteceu nos moldes e formas típicas daquela época. É bem conhecido o seu desejo de restaurar as igrejas devastadas pela guerra ou por qualquer outra causa, para que a Eucaristia pudesse ser celebrada com dignidade. Fundou ou restaurou também confrarias do Santíssimo Sacramento em muitos lugares, e fomentou as celebrações do Corpus, insistindo e ordenando que estas se fizessem com solenidade, decoro e piedade, e tudo isto, precisamente numa época da história da Igreja em que surgiram, em diversos lugares, críticas à ideia da presença real.


De igual modo, quer como Condestável do Exército, quer no convento, participava frequentemente na Eucaristia, preparando-se espiritualmente com muita seriedade e com penitências e jejuns. Contam as crónicas da época, e assim o recolhe o sumário do processo, que uma vez em que lhe perguntaram sobre os motivos pessoais de dita piedade eucarística, o Condestável respondeu: Quem quiser ver-me vencido nas batalhas que me afaste deste sagrado convite, no qual o próprio Deus, pão dos fortes, vigora os homens. Portanto, fortalecido com este manjar, revisto-me do ânimo e valor necessários para vencer o inimigo

Para além do caso pontual em si e das circunstâncias do mesmo, não deixa de ser interessante para nós esta confiança plena na Eucaristia que, concebida como pharmakon (como lhe chamam alguns Padres Gregos), nos ajuda a vencer os inimigos da vida, que já não são soldados ou cavaleiros reais, mas inimigos mais perigosos, como o pecado, a violência, o egoísmo…


Esta centralidade da Eucaristia nas nossas vidas liga muito bem com o espírito carmelita, uma vez que, já a partir da própria regra, no Capítulo XIV, o carmelita é chamado a colocar a eucaristia como o centro (não só arquitectónico ou temporal, como pede o texto da Formula Vitae), mas no centro das nossas inclinações, das nossas inquietações, dos nossos apostolados e das nossas vidas…


Que o exemplo da piedade eucarística de São Nuno de Santa Maria nos ajude a revitalizar a nossa vivência da eucaristia, para que o sacramento central da nossa fé não se converta numa mera rotina ou numa mera actividade pastoral, mas que ilumine toda a nossa vida e projecte os valores do reino sobre o nosso mundo e a nossa sociedade actual.


Nuno, santo de Maria


Outra característica muito definida do perfil espiritual de São Nuno foi a sua devoção à Virgem Maria. Já na sua vida de soldado se encomendava sempre à Virgem Santíssima, antes das batalhas, e pedia também aos soldados que o fizessem. Tinha plena confiança na protecção de Nossa Senhora. Jejuava frequentemente em honra de Nossa Senhora e fomentava sempre a devoção mariana no meio daqueles que o rodeavam. De igual modo, no fim das batalhas, costumava peregrinar a algum santuário mariano.


Por isso mandou reconstruir alguns deles que estavam abandonados ou em mau estado. Ele mesmo pagou a reconstrução de alguns templos, ou mandou construir novos, ou decorá-los dignamente. Neste sentido, muitas igrejas dedicadas a algum orago mariano devem à maior ou menor participação do santo Condestável a sua criação ou subsistência, como as de Sousel; o templo dedicado a Nossa Senhora dos Mártires, em Estremoz; Vila Viçosa; Portel; Évora; Mourão; Camarate; Monsaraz; etc. Um lugar especial merecem, na lista, tanto o templo dedicado a Santa Maria das Vitórias (conhecido como Batalha), construído pelo próprio Rei D. João I a instâncias do seu Condestável para comemorar a batalha de Aljubarrota (perto de Fátima, é uma das jóias do gótico português), como o sumptuoso templo do Carmo, em Lisboa. Alguns historiadores apontam também a intervenção do santo Condestável no auge que em Portugal foi tendo a devoção à Imaculada Conceição, que, com o tempo, se haveria de converter na Padroeira do país, em 1640, a instâncias do Rei D. João IV.

Logicamente que a piedade mariana de Nuno cresceu com o contacto com os carmelitas e, sobretudo, ao ingressar no convento de Lisboa como irmão donato. O facto de ter escolhido, como nome religioso, o de “Nuno de Santa Maria” é, a todos os títulos, significativo. Consta que passava horas em oração diante duma imagem de Nossa Senhora, a quem se encomendava constantemente. O seu exemplo deve ter contribuído, sem dúvida, para que o templo se convertesse num centro importantíssimo de piedade mariana.


Uma vez mais o exemplo de São Nuno pode ser também um estímulo para a nossa própria vida espiritual. Certamente que a devoção mariana de Nuno era vivida sob as formas e expressões de piedade daquela época. Cada período da história deve procurar as suas próprias expressões e, no caso concreto do Carmelo, somos chamados a mostrar e a difundir a devoção à Virgem Santíssima de maneira que seja um reflexo da boa notícia da salvação em Cristo. Devemos conseguir que, como o Concílio Vaticano II nos pediu, a nossa piedade e a nossa devoção mariana não desemboquem nem num afecto estéril e transitório, nem numa vã credulidade (LG 67).


Nuno, santo da humildade


Uma das características da figura do novo santo que mais chama à atenção é, sem dúvida alguma, a humildade. Não apenas no fim da sua vida, quando, sendo já carmelita, viveu de maneira totalmente austera e penitente, mas, mesmo sendo Condestável e uma das figuras mais célebres e admiradas da Coroa portuguesa, Nuno foi sempre um homem humilde, um homem que fugiu das honras excessivas e das ambições de poder.


É bem conhecida a sua tendência para a humilhação pessoal nos últimos anos da sua vida como donato carmelita, a ponto do príncipe D. Duarte, temeroso de que a sua conduta provocasse a irrisão ou o menosprezo por parte da coroa ou das instituições mais importantes do reino, o proibir de mendigar pelas ruas de Lisboa e de ir para um convento longínquo e perdido para não ser reconhecido como Condestável. Diante dos dois pedidos do príncipe, frei Nuno teve que ceder. Mas houve outros pedidos que o velho carmelita recusou com firmeza. Por exemplo, recusou ser sacerdote ou evitar os trabalhos mais humildes e baixos do mosteiro, trabalhos que, segundo o parecer do príncipe e de muitos nobres, eram contrários à dignidade e ao renome do herói nacional. Convém não esquecer que Nuno era, além disso, parente da família real, pelo casamento da sua filha Beatriz (casada com D. Afonso, filho de João I), o que tornava ainda mais incómoda para os monarcas a sua atitude. Também se negou totalmente a continuar a usar o título de Condestável ou a ser chamado por outro nome que não fosse o de Frei Nuno de Santa Maria. Como víamos mais acima, a sua resposta foi radical e sem ambiguidades: O Condestável morreu e está enterrado num santuário…


Estamos, sem dúvida, diante de um aspecto muito significativo para a nossa vida cristã actual. Num mundo que idolatra o poder, a fama, o prestigio social (às vezes inclusivamente à custa da verdade ou da justiça); num mundo em que se fomenta a vaidade das riquezas ou dos títulos; num mundo em que, apesar de um terço da humanidade passar necessidade e em algumas zonas do planeta permanecer a praga terrível da fome, se faz ostentação de riquezas e de luxos totalmente desproporcionados; num mundo em que vivemos como escravos da imagem pessoal, do look, das aparências, do culto do corpo e do politicamente correcto… o exemplo de São Nuno recorda-nos o valor da humildade e da simplicidade e convida-nos a nós, carmelitas, de um modo particular, a manter esse espírito, essa maneira de ser e de estar no mundo, por muito importante que possa ser o nosso trabalho, a nossa missão ou a nossa posição eclesial.


Posteriormente, grandes carmelitas viveram e ressaltaram o valor da humildade. Pensemos no célebre adágio de Santa Teresa de Jesus, nas sextas moradas (humildade é andar na verdade); ou no convite à simplicidade do pequeno que faz Santa Teresa de Lisieux; ou no exemplo sublime de humildade que sempre deu o Beato Tito Brandsma, mesmo ocupando os mais altos cargos na universidade e na vida civil do seu país. Muitos outros exemplos se poderiam citar dessa vivência profunda da humildade que sempre aconteceu no Carmelo. Trata-se, sem dúvida, de uma humildade cheia de coragem e de valentia, de uma humildade que não é apenas uma virtude psicológica, mas uma consequência da fé no Deus encarnado, no Deus que não duvidou em assumir a nossa humilde e frágil condição, fazendo-se um como nós para salvar, a partir de baixo, o género humano (cf. Flp. 2, 6-11).


Que o exemplo de São Nuno de Santa Maria nos ajude também a nós a viver a simplicidade evangélica, a não nos deixarmos seduzir pelas vaidades deste mundo (às vezes muito subtis) e a estar sempre próximos e solidários com os últimos, os marginalizados, com os pequenos e excluídos.


Fernando Millán Romeral, O. Carm.

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