Epílogo (n.º 24)

A Regra do Carmo

- Epílogo (n.º 24) -

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24. É isso que, com brevidade, lhes escrevemos com o intento de estabelecer para vocês a forma de conduta, segundo a qual deverão viver. Se alguém fizer mais do que o prescrito, o Senhor mesmo lhe retribuirá quando voltar. Use, porém, de discrição, que é a moderadora das virtudes.

Um pouco de história: a sabedoria do Patriarca Alberto

Alberto, pessoa de confiança do Papa, foi convidado para a difícil missão de Patriarca de Jerusalém. Ele exerceu esta função de 1206 a 1214. O século XIII era uma época de mudanças. A Palestina era um lugar de muitos e graves conflitos. Os muçulmanos estavam voltando a ocupar a Terra Santa. Jerusalém já tinha caído nas mãos deles. A Palestina já não era um lugar seguro. Mesmo assim, os peregrinos acorriam para lá. Entre eles estavam os que iam morar no Monte Carmelo para formar o grupo dos primeiros carmelitas.

Chegando na Palestina em 1206, Alberto não pôde fixar residência em Jerusalém, na sede, pois a Cidade Santa já estava nas mãos dos muçulmanos. Ele teve que governar o patriarcado desde a cidade de Akko que fica um pouco ao norte do Monte Carmelo. Foi lá que o grupo de eremitas do Monte Carmelo foi encontrá-lo para pedir a aprovação para a sua maneira de viver o evangelho.

Alberto era um homem sábio, homem de Igreja, preocupado com a renovação da Vida Religiosa. Já tinha escrito várias Regras para outros grupos religiosos da época. Sua preocupação era fazer com que a Vida Religiosa não ficasse confinada nos grandes mosteiros distantes do povo, mas se renovasse e fosse, novamente, um testemunho vivo do evangelho de Jesus Cristo, sobretudo para os pobres, os “menores”. O grupo que, naquele tempo, mais se aproximava dos pobres era o grupo dos mendicantes. Entre eles estavam os franciscanos e os dominicanos.

A sabedoria de Alberto se manifesta sobretudo no jeito todo especial com que orientou a vida dos carmelitas e organizou o conteúdo da Regra. Sem impor aos eremitas do Carmelo uma vida itinerante igual à dos mendicantes, Alberto acentuou alguns pontos que caracterizavam a vida dos mendicantes: ter um prior e não um abade (RC 4), fazer revisão semanal (RC 15), comunhão de bens e não ter propriedade (RC 12 e 13). Além disso, naquelas poucas páginas, ele soube reunir toda a riqueza da Tradição eremítica e monástica. Assim, através da vida observante dos carmelitas, esta riqueza dos séculos seria colocada ao serviço do povo de Deus e da Igreja que se renovava. Pois é através da sua observância que a Regra revela todo o seu valor.

Alberto quer e pede esta observância, mas observância equilibrada, sem exageros. A sua última recomendação é esta: Caso alguém fizer algo mais do que o prescrito, o Senhor lhe retribuirá, quando do seu regresso. Use, porém, de descrição, que é a moderadora das virtudes. Vejamos de perto, parte por parte, este epílogo da Regra.

Breve comentário do epílogo

É isso que, com brevidade, lhes escrevemos com o intento de estabelecer para vocês a forma de conduta, segundo a qual deverão viver

Alberto não teve a intenção de escrever uma Regra propriamente dita, mas apenas, como ele mesmo diz, uma forma de vida. O seu texto nasceu de uma proposta que os primeiros carmelitas lhe tinham feito (RC 3). Deste rascunho dos frades Alberto tirou o assunto para escrever a forma de vida que só 40 anos depois foi aprovada como Regra da Ordem do Carmo. O texto cresceu com o grupo que nele se inspirava e se espelhava. As adaptações e mudanças introduzidas refletem as adaptações e mudanças pelas quais passou o grupo dos primeiros carmelitas até chegarem a constituir-se como Ordem organi­zada, reconhecida e aprovada pela Igreja. Os 40 anos refletem o crescimento da identidade do grupo dos primeiros carmelitas e a maneira como a Regra foi relida à luz dos “menores”. Refletem a preocupação do grupo fundador em ser fiel à sua origem. Esta fidelidade os levou a aceitar o novo tipo de de Vida Religiosa dos mendicantes.

Caso alguém fizer algo mais do que o prescrito

Na forma de vida, Alberto colocou tudo aquilo que ele considerava importante para a vivência do evan­gelho pelo grupo dos primeiros carmelitas. E agora no fim, depois de ter enumerado todos os conselhos e normas, ele trata da seguinte possibilidade: caso alguém fizer algo mais do que o prescrito. A pergunta que surge para nós é esta: Em que consiste este algo mais do que o prescrito? É possível imaginar algo na linha da vivência do ideal do Carmelo que não seja previsto nem considerado dentro da Regra? Kees Waaijman aponta três possíveis interpretações:

Uma primeira possibilidade: Trata-se de algo mais no nível quantitativo: rezar mais, meditar mais, silenciar mais, etc. Mas isto não pode ser o sentido entendido por Alberto. Pois no nível quantitativo não é possível imaginar algo mais do que o prescrito. A própria Regra já pede o nível máximo. O prescrito é meditar dia e noite; estar sempre ocupado em algum trabalho; praticar sempre o silêncio. Mais do que sempre e mais do que dia e noite não é possível!

Uma segunda possibilidade: Trata-se de algo mais no nível qualitativo: observar a Regra com mais amor, com maior intensidade e convicção, etc. Mas também neste nível não é possível imaginar algo mais do que o prescrito. A própria Regra já pede que tudo seja feito com amor perfeito: amar o Senhor de todo o coração, com toda a alma e com toda a força e o próximo como a si mesmo (RC 19). Qualquer coisa que alguém pretenda fazer a mais na observância da Regra já está prevista e prescrita no amor perfeito. E em vários outros lugares o próprio Alberto insiste na intensidade: Devemos realizar a obediência na prática (operis veritate) (RC 4); devemos com todo cuidado revestir a armadura de Deus (RC 19); devemos observar diligentemente o silêncio (RC 21). Não é possível imaginar maior intensidade na observância. Não tem jeito de ser mais intensivo.

A terceira possibilidade: Alberto ao falar do algo mais do que o prescrito se refere a algo que não está prescrito; algo que não cai debaixo da norma de vida; algo que conduz o carmelita, a carmelita, para fora do terreno regulamentado pela norma de vida, fora das suas próprias fronteiras, fora de sua casa, fora do mundo que nos é familiar. E o que poderia ser então este algo mais que não cai debaixo da norma de vida? O próprio Alberto abre a janela evocando a parábola do Bom Samaritano que socorreu o homem que foi assaltado e largado meio morto à beira da estrada no deserto entre Jerusalém e Jericó. O algo mais do que o prescrito é o deserto da vida, onde ocorrem os assaltos contra a vida; onde corre o rio da vida, cujo leito não pode ser determinado pelas normas da Regra; onde ocorrem os fatos que não podem ser previstos; onde recebemos os pobres que, sem nós sabermos ou pedirmos, fazem opção pelo Carmelo.

O Senhor mesmo lhe retribuirá, quando voltar

O Samaritano estava de viagem. Tinha um rumo, uma norma de vida, uma Regra. Queria chegar a um lugar. Mas o pobre assaltado tirou-o da viagem prevista, desviou-o do rumo, e o fez passar para além do prescrito. Foi a visão do homem assaltado meio morto à beira da estrada, que acionou nele a misericórdia. A misericórdia significa ter o coração na miséria dos outros. É com-paixão: sofrer com o outro, a outra. O Samari­tano pára, chega perto, desce do animal, cuida da ferida, faz curativo, coloca o homem no seu animal, leva até à hospedaria, passa noite com ele e, no fim, envolve o dono da hospedaria dando dinheiro e dizendo: “Cuide dele, e o que gastares a mais, eu, quando do meu regresso te pagarei”.

Esta é a frase que ocorre na Regra: Caso alguém fizer mais do que o prescrito, o Senhor lhe retribuirá, quando do seu regresso. A misericórdia leva-nos para um terreno, onde se ultrapassa a categoria de Norma e de Regra. Ela nos leva para fora de nós mesmos, fora da nossa segurança, fora do que podemos prever e resolver. Ela nos desestabiliza. A única segurança da misericórdia é ela mesma. Ela é uma desestabilização que estabiliza; uma desregulamentação que regulamenta; uma viagem para fora de nós que nos conduz para casa; uma forma de perder a vida que garante a vida. Através do pobre, o samaritano envolveu o dono da hospedaria. Através dos pobres que despeja na nossa hospedaria, Deus nos envolve e provoca em nós a misericórdia, a compaixão, o amor. E é para este algo mais do que o prescrito que vale a frase final sobre a discrição. No fundo, a Regra aponta para o amor que anima a misericórdia por dentro.

Use, porém, de discrição, que é a moderadora das virtudes

Será que o amor necessita de uma moderadora? A Regra diz que a moderadora da misericórdia, do amor, deve ser a discrição. O que ela entende por discrição, por uma pessoa discreta?  Quando se diz: “Fulana é uma pessoa discreta”, se entende uma pessoa reservada, uma pessoa que sabe a medida certa, uma pessoa sábia. Quando a Regra diz que o amor precisa de moderadora, não o diz no sentido de que o amor deve ser domado e reprimido no seu ímpeto, mas no sentido de que o amor deve crescer até adquirir a sabedoria. A sabedoria que nasce do amor é a moderadora, o guia de todas as virtudes.

Alberto não quer que a Regra seja uma norma exterior, mas sim uma norma que faz crescer algo dentro da pessoa, faz crescer o amor. “Viver em obséquio de Jesus Cristo” não é só eu copiar em mim o que Jesus fez, mas é também e sobretudo eu deixar que Jesus, ele mesmo, cresça em mim, tome conta da minha vida e vá ocupando todo o espaço. Ele é o caminho, a verdade e a vida, a porta, o pastor, a videira, o pão, a ressurreição. Cada um, cada uma, deve deixar que esta vida possa crescer dentro de si. O importante é manter o rumo e o discernimento, para que a fé, a esperança e o amor possam penetrar tudo. Esta é a sabedoria do amor que, a partir de dentro, é moderadora de si mesma.

Um aspecto importante da espiritualidade carmelitana: "...., se for possível!"

Convém dar uma atenção especial à ressalva que ocorre no capítulo final da Regra: Use, porém, de discrição, que é a moderadora das virtudes. A Regra do Carmo está cheia de ressalvas assim. Eis a lista completa:

  • RC 4: A escolha do prior deve ser feita através do consenso unânime  ou da parte mais nume­rosa e madura.
  • RC 5: Vocês podem ter lugares de moradia em localidades desertas  ou onde lhes forem doados.
  • RC 6: Cada um tenha a sua cela separada conforme a disposição do prior com o consentimento dos outros irmãos ou da parte mais numerosa e madura.
  • RC 7: Vocês devem ter um refeitório comum com leitura da Bíblia, onde comodamente puder ser observado.
  • RC 10: Vocês devem permanecer na cela, a não ser que devam ocupar-se em outros justifi­cados afazeres.
  • RC 11: Os que sabem dizer as horas canônicas devem rezar o ofício, os que não sabem...
  • RC 12: Tudo é em comum e deve ser distribuído pelo responsável indicado pelo prior, levando-se em conta a idade e as necessidades das pessoas.
  • RC 13: Vocês não podem ter nada de próprio, mas na medida das necessidades podem ter jumentos e galinhas.
  • RC 14: A capela deve ser construída no meio das celas, conforme for mais fácil.
  • RC 14: Nela devem reunir-se todas as manhãs para a missa, onde isso puder ser feito comodamente.
  • RC 15: Vocês devem reunir-se nos domingos, ou em outros dias, caso for necessário, para tratar do andamento do conjunto e do bem-estar de cada um.
  • RC 16: Vocês devem fazer jejum todos os dias, com exceção dos domingos, a não ser que doença, fraqueza física ou outro justo motivo aconselhem a dispensar o jejum, pois a necessi­dade não tem lei.
  • RC 17: Vocês devem abster-se de carne, a não ser que deva ser tomada como remédio para doença ou fraqueza física.
  • RC 24: Esta é a norma que estabelecemos. Quem quiser fazer mais do que o prescrito, que o Senhor lhe retribua. Use, porém, de discrição, que é a moderadora das virtudes.

A Regra insiste no essencial e dele não abre mão, mas relativiza quase todas as outras normas que ela propõe como meios para alcançá-lo! Isto também faz parte da espiritualidade carmelitana! Em que sentido? Repetimos aqui o que dissemos anteriormente: o ideal é permanente e absoluto. A forma de realizá-lo é relativizada. Deste modo, a Regra impede que a pessoa busque a sua segurança diante de Deus na observância perfeita das normas, pois é exatamente destas normas que se diz: “Se for possível.....; se puder....; conforme for....”. Ou seja, a Regra aponta vários caminhos de se caminhar em direção ao ideal. Há varias maneiras de se realizá-lo. O ideal é muito simples e despretensioso, profundamente revolucionário e altamente com­prometedor com relação ao sistema da sociedade e da Igreja. Ora, é nesta perspectiva revolu­cionária da vivência do Evangelho que a Regra insiste e dela não abre mão nem a relativiza. Ela abre mão de pequenas coisas, mas não abre mão da inspiração fundamental: ser uma fraternidade orante e profética ao serviço do povo, dos “menores”. A Regra não abre mão do Absoluto que se concretiza nos seguintes pontos:

  • Seguimento de Jesus.
  • Oração pessoal e comunitária.
  • Fraternidade.
  • Resguardo da solidão.
  • Revisão semanal.
  • Comunhão de bens.
  • Vivência da ressurreição.
  • Luta sem trégua.
  • Trabalho .
  • Silêncio.

 Carlos Mesters, O. Carm.

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