Um Coração que Escuta. A Vida Contemplativa

AS ÉPOCAS DO CORAÇÃO

Um Coração que escuta - A Vida Contemplativa

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    John Welch, O. Carm.

    Deus, sempre presente

     

    Uma das mensagens mais impressionantes transmitida pelos santos Carmelitas foi a descoberta do facto de que Deus nos ama primeiro tal como somos. Pensando que procuravam um Deus ausente e que a vida consistia na procura desse Deus, os santos Carmelitas regressavam dos seus esforços testemunhando que foi o próprio Deus a procurá-los durante todo aquele tempo, e que a história das nossas vidas não é a procura que fazemos de Deus, mas o desejo que Deus tem de nós e a procura que Ele faz de nós. A fome do nosso coração, o desejo de que somos, é devida ao facto de que Deus nos desejou e amou primeiro. Com o decorrer do tempo pode suceder que a nossa transformação seja tão grande que vivamos numa consonância de desejo, com o nosso desejo humano participando plenamente do desejo de Deus.

     

    Em certa ocasião Teresa de Ávila ouviu estas palavras enquanto orava: “Procura-te em mim”! Perguntou a muitos dos seus amigos e a alguns directores espirituais de Ávila o significado de: “Procura-te em mim”! Entre as pessoas a quem perguntou estavam Francisco de Salcedo, um director espiritual leigo, o seu irmão Lourenço de Cepeda e João da Cruz. Reuniram-se para discutir as suas respostas mas Teresa não estava presente e por isso decidiram enviá-las. Seguindo a tradição das disputas académicas, praticada em algumas escolas, Teresa encontrou alegremente falta em cada resposta e subtilmente riu-se de cada uma delas. Não temos as respostas mas as rejeições de Teresa a essas mesmas respostas. Na sua resposta, Francisco de Salcedo citara muitas vezes S. Paulo e termina desculpando-se, humildemente, por ter “escrito estupidezes”. Teresa repreende-o por considerar as palavras de S. Paulo “estupidezes”, ameaçando-o entregá-lo à Inquisição.

     

    Supõe-se que João da Cruz tenha respondido que o significado de “Procura-te em mim!” exigia que ela morresse para o mundo para se poder buscar em Deus. Teresa contestou-o com uma oração na qual pedia ser liberta de gente tão espiritual como João da Cruz. Disse-lhe que a sua resposta podia ser boa para os membros da Companhia de Jesus, mas não para aqueles a quem tinha em mente. A vida não é suficientemente longa se temos que morrer para o mundo antes de encontrar Deus. Citando o Evangelho, Teresa fazia notar que Maria Madalena não estava morta para o mundo antes de se encontrar com Jesus; tão pouco a mulher cananeia estava morta para o mundo antes de pedir as migalhas da mesa. E a mulher samararitana tão pouco estava morta para o mundo antes de se encontrar com Jesus no poço. Era quem era e Jesus aceitou-a. Teresa termina a sua resposta agradecendo a João da Cruz por ter respondido ao que não lhe tinha pedido.

     

    O que Teresa pretende demonstrar é que Deus vem ao nosso encontro e nos aceita tal qual somos no percurso da nossa vida. Fomos aceites por Ele desde sempre. O desafio que nos é colocado é o de acolher esta Presença que nos aceita, e permitir que nos transforme. A realidade deste abraço é a essência da nossa oração. Orar, portanto, é entrar confiadamente nesta relação e fazer dela o fundamento da nossa vida. É fácil em teoria, mas muito difícil vivê-la diariamente.

     

    Um teólogo resumiu desta maneira a mensagem de Teresa: o melhor modo de cooperar com Deus que corrige a orientação da nossa vida, é prestar uma fiel e constante atenção ao nosso íntimo e ao nosso centro.

     

    Atraídos pelo amor

     

    A tradição Carmelita pode ser mal compreendida. O Carmelo pode parecer dizer às pessoas que somente um rigoroso ascetismo pode conduzi-las à união com Deus; que os ídolos da nossa vida podem ser derrubados unicamente através de esforços heróicos e de uma vida isolada e austera quando, na verdade, a mensagem do Carmelo é a da necessidade da graça de Deus e a boa notícia é a de que a graça está sempre disponível: basta que a nossa vida se lhe abra.

     

    Na Subida do Monte Carmelo João da Cruz dá alguns conselhos para nos ajudar a desapegar dos ídolos que nos submeteram ao seu serviço. Os conselhos, num primeiro momento, podem parecer absurdamente intransigentes e, às vezes, também desproporcionados. Mas João é rápido em afirmar que a força de vontade e o ascetismo sozinhos, não podem libertar o coração escravizado pelos ídolos. O ídolo fornece algum alimento ao coração esfomeado de Deus. O ídolo talvez lhe proporcione alguma alegria, alguma identidade, alguma segurança ao peregrino esfomeado. O coração por si mesmo é incapaz de afastar-se deste alimento e entrar num vazio afectivo, esperando pelo Senhor.

     

    João testemunha que só quando o coração tem uma oferta melhor é que pode então desapegar-se do que estava apegado anteriormente com todas as forças. Só quando Deus entra numa vida e acende nela um amor no mais fundo da pessoa e a aparta dos amores de menor valor, só então é que esta pessoa pode abrir-se e desapegar-se dos ídolos. Com um convite de um amor como este, o que antes era impossível (deixar os ídolos) torna-se gradualmente possível, enquanto os ídolos se vão desvanecendo. O coração vai passando então de um amor para outro. Porque João está convencido de que Deus é o centro da alma, a tarefa não é encontrar um Deus distante, mas despertar em nós a consciência da realidade de um Deus “que sempre esteve aí”.

     

    “Tudo é graça”, disse Teresa de Lisieux, que expressou esta convicção enquanto morria de tuberculose, rodeada de uma espiritualidade que desconfiava da natureza humana, e que na convicção de que o amor de Deus deveria ser merecido convidava as “almas vítimas” a acalmar a ira de Deus. Quando lhe disseram que não podia receber a Santa Comunhão, a resposta de Teresa foi simplesmente que assim como era uma graça poder recebê-la, todavia continuava a ser uma graça, agora que não a podia receber. “Tudo é graça”.

     

    Teresa de Lisieux estava convencida de que Deus estava sempre presente nela, que a amava e que este amor era gratuito, sem mérito algum da sua parte. Falando dos méritos dizia com simplicidade: “Não tenho nenhum”.

     

    Teresa conhecia a justiça de Deus e estava consciente do facto de que pessoas devotas ofereciam-se a si mesmas como vítimas a essa justiça, para que os pecadores fossem perdoados e Deus aplacado. Este Deus não era familiar a Teresa. Nenhum dos rostos de Deus presentes na sua vida exigia ser aplacado: nem sua mãe, nem seu pai; nem Paulina, nem Celina; nem Maria, nem o Deus da Bíblia hebraica que amava os pequenos, nem Jesus que chamou os pequenos a vir a si; nem mesmo o Amado do Cântico dos Cânticos ou das poesias de João da Cruz. Teresa acreditava que Deus é justo, mas que esta justiça conhece muito bem a nossa pequenez e leva-a em conta.

     

    Teresa de Lisieux foi descrita certa vez como “um Vaticano II em miniatura”. A atenção recente prestada à sua mensagem recorda-nos que não se deve dar prioridade aos nossos méritos e esforços, mas a uma vida vivida na confiança e na entrega. Teresa começa a sua autobiografia com as palavras de S. Paulo aos Romanos: “Portanto não depende da vontade nem dos esforços humanos, mas de Deus que usa de misericórdia”.

     

    Teresa antecipou-se à teologia dos nossos dias que entende a graça como graça incriada, uma presença, plena de amor e salvífica, do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Quando falamos de contemplação, simplesmente estamos a encorajar a abertura a este amor gratuito que nos é concedido. Deus vem continuamente até nós convidando-nos a entrar, mais livremente, na profundidade da nossa vida, numa relação de amor. Contemplação significa estar abertos a este amor transformante, sem levar em conta o modo como se aproxima de nós. 

     

    A contemplação reorientada 

     

    Um dos desenvolvimentos recentes na compreensão do carisma Carmelita é o novo lugar atribuído à contemplação entre as nossas prioridades. Sempre se falou da oração, da comunidade e do ministério como os três pilares do nosso carisma. A contemplação era vista como uma forma de oração superior ou mais profunda, e algumas vezes, na nossa história, ministério e contemplação apareciam como que em contraposição entre si. Não obstante, aqui temos uma descrição da contemplação que se encontra no documento da Ordem Carmelita sobre a formação: “Nesta progressiva e contínua transformação em Cristo realizada em nós pelo Espírito, Deus atrai-nos para Si num caminho interior que conduz da periferia dispersante da vida para a cela mais íntima do nosso ser, onde Ele mora e nos une a Si”.

     

    Começamos a entender agora que a contemplação fundamenta e une a oração, a comunidade e o ministério. A porta principal é a oração, mas o amor de Deus é-nos oferecido de várias maneiras nas diversas realidades da nossa vida através das quais podemos entrar nessa abertura contemplativa de Deus, isto é, viver uma vida autêntica de fé, esperança e amor, através de qualquer destes três caminhos. Não são caminhos opostos mas são janelas abertas para a realidade transcendente que se alberga no mais fundo da nossa vida e nos permitem contactar com o Mistério.

     

    É importante sublinhar esta perspectiva, porque o Carmelo teve oitocentos anos de ministério como resposta à Igreja e ao povo de Deus e, se Deus quiser, terá muitos mais séculos de serviço desinteressado. E nada disto é contrário à vida contemplativa. Muitos Carmelitas foram transformados em pessoas mais cheias de amor, graças ao seu empenho com o povo de Deus nos vários ministérios.

     

    O Arcebispo Romero foi transformado e convertido pelo amor de Deus não só na solidão da sua oração, como também no seu compromisso com o Senhor da história, nos duros esforços do povo por encontrar o seu lugar no banquete da vida. A contemplação deveria ser a fonte mais profunda de compaixão pelo nosso mundo. O contemplativo é aquele que foi levado a entrar na pobreza e impotência absolutas de uma alma sem Deus. O contemplativo aprende a esperar na esperança juntamente com todos aqueles que esperam a misericórdia de Deus. Nesta escuta contemplativa aprende-se a dizer: “Somos pobres”!

     

    A nossa vivência contemplativa, a nossa abertura ao amor de Deus que vem até nós nos bons e maus momentos, é um dom que podemos compartilhar com os outros. O que aconteceu na vida dos santos do Carmelo e na vida dos Carmelitas de hoje, acontece na vida de todos. Poderemos dar um testemunho melhor se pusermos a atenção no que somos: uma fraternidade contemplativa no meio do povo.

     

    Falando à Congregação Geral da Ordem em 1999, um Carmelita alemão acentuou este carisma contemplativo: “Creio firmemente que a nossa primeira tarefa é colocar muita da nossa energia, tempo, talento e capacidades pessoais neste processo de uma crescente relação com o Deus da vida e do amor. O nosso crescimento pessoal, humano e espiritual, assim como também o nosso futuro como Ordem, dependem do quanto estejamos dispostos a conceder e a desenvolver  esta íntima amizade com Deus, quer individualmente quer comunitariamente, para podermos ser transformados segundo a imagem de Cristo, que actua através de nós para o bem da Igreja e do mundo”.

     

    Resumo

    A história do Amado que vem ao encontro da Amada para atrair o seu coração para uma profunda união, é a história protótipo que os Carmelitas experimentaram repetidas vezes. A nossa vida não pode ser forçada à submissão a não ser que seja conduzida pelo amor. Não podemos deixar o apego aos nossos ídolos se Deus não acender no nosso coração um amor mais profundo. O coração tem então um lugar para onde ir e pode confiadamente desamarrar-se das suas “ataduras”, dependências e ídolos. O amor de Deus, sempre presente e oferecido, atrai o coração até à profundidade de Deus, “entremos mais adentro na espessura”, aí encontra-se com o sofrimento do mundo. A nossa atitude contemplativa não nos afasta das preocupações do mundo mas lança-nos para a luta corajosa no mundo.

     

    Perguntas para reflexão

     

    • Como “sentinela na noite” mantenho-me vigilante à espera da chegada do amor de Deus? Na minha vida onde me sinto chamado a uma escuta mais profunda? Onde encontro os desafios contínuos para a minha mente e o meu coração? Estes desafios são convites para me entregar, de um modo mais profundo, ao amor transformante de Deus?
    • Entre os sinais actuantes do amor de Deus estão uma crescente confiança na Sua misericórdia e uma crescente liberdade perante aquilo que escraviza o coração. Experimento esta crescente confiança? Estou consciente de uma maior liberdade? Na verdade entreguei-me ao Mistério que se alberga no centro da minha vida ou continuo a lutar por assegurar a minha própria existência?
    • Vi o rosto de Cristo no rosto das pessoas a quem sirvo? Consigo reconhecer o convite do amor transformante de Deus quando se aproxima de mim disfarçado numa cultura particular?
    • Na minha comunidade e no meu ministério, como posso ajudar a criar as condições para “um coração que escuta”? 

     

    Continua 

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