Santa Maria Madalena de’ Pazzi: Palavra e Eucaristia

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Quando nos aproximamos da extraordinária vivência da mística carmelita florentina, S. Maria Madalena de’ Pazzi (†1607), cujo 450.º aniversário do nascimento (2.4.1566) estamos a celebrar, surpreende-nos a riqueza da sua espiritualidade e a variedade de temas, a ponto de não sabermos por onde começar e em que a poderemos imitar. O melhor será entrar desde logo pela porta principal, a qual nela é, sem dúvida, a Palavra e a Eucaristia, entendidas no ambiente mais amplo e natural da sua vivência na liturgia, que ritmava a vida do Mosteiro, informando toda a sua existência e oração. De facto, 90% das cerca de 430 experiências místicas registadas na sua vida tem a ver com a liturgia do dia e gravita em torno da Eucaristia, da qual partem ou à qual conduzem, tendo o seu tema quase sempre a ver com alguma passagem bíblica, em particular com o Evangelho. O perfil da experiência mística da nossa carmelita é assim claramente eucarístico, compenetrando-se e completando-se nela os dois alimentos fundamentais do banquete eucarístico em que se recebe “o Verbo humanado”: o pão da Palavra e o da Eucaristia.

 

1. A Palavra

 

Quando aos 14 anos de idade S. Maria Madalena quis enriquecer o seu método de oração, que lhe fora ensinado aos 9 anos pelo Padre jesuíta André Rossi – pôr-se de joelhos, invocar o Espírito Santo, fazer o exame de consciência e rezar a confissão, para em seguida meditar sobre a paixão de Cristo, deixando ela “que fosse Deus a agir, dando-lhe, por sua misericórdia, o que Lhe agradava” (I, 73) –, passou também a meditar o Evangelho dos domingos e principais festas litúrgicas da Igreja, que preparava com a ajuda dalgum dos excelentes comentários que então circulavam em italiano, e meditava recorrendo a um método original. Na véspera do domingo anterior, pegava no Evangelho do domingo seguinte e dividia-o em sete partes, meditando, depois, cada uma delas num dia da semana, dividindo, por sua vez, cada uma dessas porções em três pontos, segundo o estilo inaciano, para depois o meditar, palavra após palavra, numa oração que se podia estender por diversas horas.


Nessa oração procurava apropriar-se sapiencialmente do texto bíblico, considerando cada uma das suas palavras, repetindo-a e ruminando-a, para o saborear “com pureza de coração, vazia de si mesma e do seu amor próprio” (VII, 309), de modo a dele se imbuir, com fé, esperança, amor e afeto, abrindo-se a todo o mistério da salvação e à revelação dos segredos divinos, “pois o poder de Deus (o Evangelho: Rm 1,16) é como uma pinha, repleta de pinhões, que é preciso lançar no fogo do amor divino, para poder partir a casca com a faca da Palavra de Deus, de modo a dela retirar o seu fruto tão suave e nutritivo” (III, 179s), o amor de Deus, que nos é comunicado pelo Espírito Santo, “refrigério, deleite e alimento das nossas almas”, a quem pede: “Vem e tira de mim tudo o que é meu e infunde em mim só o que é teu” (VI, 194), para só dele viver, a Ele se unindo e nele se transformando por amor.


Sem o saber, ela aprendeu a fazer uma autêntica lectio divina, que informará toda a sua vida carmelita e experiência mística, levando-a a apropriar-se de tal modo da Sagrada Escritura que será capaz de repetir de cor extensos textos da Vulgata em latim durante os êxtases em que falava. Assim a Palavra encarnava nela, fazendo dela uma profeta, como indica a Regra carmelita: “A espada do Espírito, que é a Palavra de Deus, habite com abundância na vossa boca e nos vossos corações. E tudo o que tiverdes de fazer, seja feito na Palavra do Senhor”. Por isso, pede ao Espírito Santo: “Venha aquele que, descendo, fez encarnar em Maria o Verbo e faça em nós pela graça o que nela fez pela graça e pela natureza” (VI, 194). Ao invés de S. Teresa de Ávila, teve a sorte de ter sempre acesso à Sagrada Escritura, que então circulava livremente, primeiro em vernáculo, depois em latim; e quando, à imagem do que acontecera em Espanha, em 1559, também quiseram impedir a sua leitura aos não-clérigo em Itália, escreve ao Papa Sisto V a pedir-lhe que, “não seja avaro e não deixe, por misericórdia, nem queira que fechem a fonte da piedade do Verbo humanado, isto é, o Santíssimo Sacramento e a sua Palavra”, para que estes possam ser dados “aos seus súbditos e ministros e estes também os possam dispensar com liberalidade aos outros”, pois deles é que deve partir a reforma da Igreja (VII, 64).

 

2. A Eucaristia

 

Desde muito pequena, Madalena sentiu uma irresistível atração pela Eucaristia (I, 76), a qual recebeu a primeira vez aos 10 anos, no dia 25 de março de 1576, festa da Encarnação do Senhor, tendo pouco depois, a 19 de abril, Quinta-feira santa, feito voto a Deus de perpétua virgindade, acabando por ingressar para sempre aos 16 anos, a 27 de novembro de 1582, no Carmelo de Santa Maria dos Anjos – o primeiro Carmelo feminino do mundo –, que escolhera porque nele se comungava todos os dias (I, 85).


A partir de então a Eucaristia marcará toda a sua existência, sendo dela que partem ou a ela que conduzem quase todas as suas experiências místicas. A Eucaristia é a Páscoa que o Senhor desejou ardentemente comer com os seus e em que, num excesso louco de amor, num ato incompreensível de misericórdia e de bondade infinitas (I,226ss; II, 402), se deixou a si mesmo, esquecendo-se de si (VII, 243), para se dar a si mesmo e se unir connosco “com o mesmo amor com que encarnou, assumindo a nossa humanidade” (II, 222s). Ela é “a janela do céu”, “a mesa celeste”, “o maná escondido”, que desce diariamente para alimentar o povo de Deus no deserto desta vida (I, 186), maná “que contém em si todos os sabores” (IV, 249) e dá a beber sem medida o fogo do amor divino (II, 302), o Espírito Santo, que renova em nós todo o mistério da salvação.


Por isso diz: “Quando fordes comungar, pensai que esta é a maior e mais digna ação que se pode fazer: receber em vós o Senhor Deus” (VII, 240). Não se pode “encontrar meio mais eficaz para aperfeiçoar a alma do que aproximar-se desta mesa divina, graças à qual, se dela vos soubésseis servir bem, ficaríeis cheias do amor de Deus, porque uma só comunhão é capaz de fazer santa uma alma” (ib., 241). Para isso, após comungar, há, que se esquecer de si mesmo e de tudo o resto, para se perder em Deus, apercebendo-se que “tendes dentro de vós toda a Santíssima Trindade” (ib.) e “imaginando que então só se encontram Deus e vós neste mundo”, aproveitando bem esse “tempo que é o mais precioso e oportuno para se relacionar com Deus, escutar a sua voz e aprender dele a servi-lo segundo a sua vontade, dando glória à Santíssima Trindade e tornando-se útil a todo o mundo”, dando muitos frutos de caridade (ib., 243s).


É assim que em Maria Madalena de’ Pazzi, Palavra e Eucaristia se completam: a Palavra revela o mistério e nele introduz, descobrindo o amor de Deus, apontando os seus caminhos e preparando para a Eucaristia, ao passo que a Eucaristia os comunica e deles faz participar, dando força para pôr em prática a Palavra de Deus, seguindo o caminho de Cristo em íntima comunhão com Deus, a Igreja e os irmãos. Transformando toda a realidade em epifania de Deus e fazendo da própria existência um sacramento de amor ao próximo, para bem da Igreja e da humanidade.

Fr. Pedro Bravo, O. Carm.

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