Da luta diária e das armas espirituais (3) (nn.º 18-19)

A Regra do Carmo

- Da luta diária e das armas espirituais (3) (nn.º 18-19) -

18. Visto que a vida humana na terra é uma tentação, e todos os que querem viver fielmente em Cristo sofrem perseguição, e como o seu adversário, o diabo, rodeia por aí como um leão que ruge, esprei­tando a quem devorar, procurem, com toda a diligência, revestir-se da armadura de Deus, para que possam resistir às embosca­das do inimigo.

19. Os rins devem ser cingidos com o cíngulo da castidade, o peito protegido por pensamentos santos, pois está escrito: O pensamento santo te guardará. A couraça da justiça deve ser usada como veste, a fim de que vocês amem o Senhor com todo o coração, com toda a alma e com todas as forças, e o próximo como a si mesmos. Sempre e em tudo deve ser empunhado o escudo da fé, com o qual possam apagar todas as flechas incendiárias do maligno, pois sem a fé é impossível agradar a Deus. O capacete da salvação deve ser colocado sobre a cabeça, para que esperem a salvação unicamente do Salvador, pois é ele que libertará o seu povo dos pecados.

E que a espada do Espírito, que é a Palavra de Deus, habite abundantemente em sua boca e em seus corações, e tudo que vocês tiverem de fazer, seja lá o que for, que seja feito na Palavra do Senhor.

Um pouco de história: sobre a Lectio Divina ou Leitura Orante da Bíblia

A Lectio Divina é a leitura crente e orante da Palavra de Deus. Na sua origem, ela nada mais é que a leitura que os cristãos faziam da Bíblia para animar sua fé, esperança e amor. Ela é tão antiga quanto a própria Igreja, que vive da Palavra de Deus e dela depende como a água da sua fonte (Dei Verbum 7.10.21).

A Lectio Divina tornou-se a espinha dorsal da Vida Religiosa. Em torno da Palavra de Deus, ouvida, meditada e rezada, surgiu e se organizou o monaquismo do deserto. As sucessivas reformas e transformações da Vida Religiosa sempre retomavam a Lectio Divina como a sua marca registrada. As Regras de Pacômio, Agostinho, Basílio e Bento fizeram da leitura da Bíblia, junto com o trabalho manual e a liturgia, a tríplice base da Vida Religiosa.

A sistematização da Lectio Divina em quatro degraus como nós a conhecemos hoje em dia veio só no século XII. Por volta do ano 1150, Guigo, um monge cartuxo, escreveu um livrinho chamado “A Escada dos Monges”, onde introduz os quatro degraus: Leitura, Meditação, Oração e Contemplação. Na des­crição destes quatro degraus, Guigo sintetizou a tradição que vinha de longe e a trans­formou em instrumento didático de leitura para servir de instrução aos jovens que se iniciavam na vida monástica.

No século XIII, os Mendicantes criaram um novo tipo de Vida Religiosa, mais inserida no meio dos “menores”(pobres). Eles fizeram da Lectio Divina a fonte inspiradora do seu movimento reno­vador. A vida e os escritos dos primeiros Franciscanos, Dominicanos, Servitas e Carmelitas não deixam dúvida sobre este ponto. Na Regra de Santo Alberto transparece como os primeiros Car­melitas, fiéis a esta longa tradição, procuravam alimentar sua vida com a leitura e a meditação da Palavra de Deus.

A maneira como a Leitura Orante da Bíblia aparece na Regra

 As nove vezes que a Regra recomenda explicitamente a leitura da Bíblia

  • Nº 7 : Ouvir a Sagrada Escritura durante as refeições.
  • Nº 10: Meditar dia e noite a Lei do Senhor.
  • Nº 11: Rezar os Salmos (horas canónicas).
  • Nº 14: Participar diariamente da Eucaristia (toda feita de textos bíblicos).
  • Nº 19: Ter pensamento santo (que é fruto da Leitura Orante).
  • Nº 19: A Palavra deve habitar na boca e no coração.
  • Nº 19: Agir sempre de acordo com a Palavra de Deus.
  • Nº 20: Ler com frequência as cartas de Paulo.
  • Nº 22: Ter diante de si o exemplo de Jesus servidor como está nos evangelhos.

As duas portas que a Regra abre para a Palavra de Deus poder entrar na vida dos Carmelitas

A porta da leitura pessoal: meditação na cela (Rc 10), ruminação da Palavra que faz a Palavra descer da boca para o coração (Rc 19), produz pensamentos santos (Rc 19) e leva a agir em tudo conforme a Palavra de Deus (Rc 19).

A porta da leitura comunitária: ouvir juntos a Palavra no refeitório, durante as refei­ções (Rc 7), e na capela durante a celebração da Eucaristia (Rc 14). Não se sabe se naquele remoto início lá no Monte Carmelo o Ofício Divino era feito no mesmo espaço físico (Rc 11).

A pedagogia do método dos quatro degraus da Lectio Divina, que transparece na Regra

  • Lectio. Antes de mais nada, a Palavra deve ser ouvida ou lida: tanto em comum, no re­feitório (Rc 7), na Eucaristia (Rc 14), no Ofício Divino (Rc 11), como em particular, na cela (Rc 10). A Regra pede para ler muito as cartas de Paulo (Rc 20).
  • Meditatio. Em seguida, a Palavra lida e ouvida deve ser meditada e ruminada. Esta meditação deve ser feita dia e noite, sem cessar, sobretudo na cela (Rc 10). Por meio desta ruminação, a Palavra desce da boca para o coração (Rc 19) e produz pensamentos santos (Rc 19).
  • Oratio. A Palavra, uma vez ouvida e meditada, deve ser envolvida pela oração, deve tornar-se oração: tanto no Ofício Divino (Rc 11) e na Eucaristia (Rc 14), como na cela, onde o Carmelita deve vigiar em orações, dia e noite (Rc 10).
  • Contemplatio. Esta leitura produz o seguinte resultado: a Palavra de Deus invade o pen­samento (Rc 19), o coração (Rc 19) e a ação e, assim, tudo é feito na Palavra do Senhor (Rc 19).

A Regra recomenda uma leitura fiel à Tradição

A Lectio Divina marcava a vida dos primeiros Carmelitas, não como um exercício ascético de leitura, mas sim como uma atitude de vida pela qual se situavam dentro do grande rio da Tradição. A Regra se apresenta como uma norma de vida que prolonga a Bíblia (Rc 1) e tenta sistematizar o ensina­mento dos Santos Padres (Rc 2). Ela pede para que a leitura seja feita de acordo com as instruções dos Santos Padres e os costumes aprovados pela Igreja (Rc 11), pela tradição litúrgica (Rc 11) e pela prática secular da Lectio Divina.

Além disso, os primeiros Carmelitas procuravam assumir na sua vida o ideal da renovação da Igreja da época. O quadro de referências que está por baixo da parte central da Regra (Rc 10 a 15) reproduz e atualiza o mode­lo da comunidade dos Atos dos Apóstolos.

A Regra, ela mesma, é fonte e fruto da Leitura Orante da Bíblia

A Regra do Carmo não só recomenda a leitura da Bíblia, mas ela mesma também a pratica. A Regra é, ao mesmo tempo, fonte e fruto da Lectio Divina. É o que nos mostra a maneira como ela usa e lê a Bíblia:

  • Familiaridade, liberdade, fidelidade. O “Autor” da Regra conhecia a Bíblia de memória e a assimilou em sua vida a ponto de já não distinguir entre as suas próprias palavras e as palavras da Bíblia. Ele exprime o seu próprio pensamento com frases tiradas da Bíblia. É difícil saber exatamente quantas vezes a Regra usa a Bíblia para descrever a Norma de Vida dos primeiros Carmelitas. Alguns acham que é mais de cem vezes! O autor usa a Bíblia sem citar, cita sem verificar, junta e separa as frases como e quando quer, muda e adapta conforme lhe parece útil, como se fosse a sua própria palavra. Esta maneira de usar a Bíblia é fruto de longa e assídua leitura, marcada pela familiaridade, pela liberdade e pela fidelidade.
  • Continuação atualizada do Novo Testamento. A Regra de Santo Alberto se apresenta como uma norma de vida em continuidade com a Bíblia, sobretudo com o Novo Testamento. É como se fosse uma nova carta paulina ao lado das outras cartas que Paulo escreveu para as comunidades. Como se fosse uma releitura da carta aos Hebreus.
  • As figuras bíblicas de Elias e Maria. Embora, no número 15, ela manifeste uma certa preferência pelas cartas do Apóstolo Paulo, a Regra do Carmo usa, cita e evoca, sem distinção, tanto o Antigo como o Novo Testa­men­to. É curioso: a recomendação explícita de ler as cartas de Paulo não chegou a marcar a espiri­tuali­dade da Família Carmelitana. A sua espiritualidade continuou centrada em torno das figuras de Elias e Maria, ambas da Bíblia, unindo o Antigo e o Novo Testamento, o masculino e o feminino.
  • A Comunidade viva como quadro de referências. O quadro de referências dentro do qual a Regra lê a Bíblia é o desejo de imitar a comunidade ideal dos primeiros cristãos, que transparece ao longo dos números 10 a 15. Era este também o quadro de referências que, na­quele início do século XIII, animava a renovação da Igreja.
  • Viver em obséquio de Jesus Cristo. O objetivo, a partir do qual e em função do qual a Regra usa e lê a Bíblia é a preocupa­ção de viver em obséquio de Jesus Cristo, expressa no Prólogo. Esta preocupação percorre a Regra de ponta a ponta.

A maneira como Jesus lia e interpretava a Bíblia

A nova luz nos olhos que liberta o sentido pleno das palavras

Numa roda de amigos alguém mostrou uma fotografia, onde se via um homem de rosto severo, com o dedo levantado, quase agredindo o público. Todos ficaram com a ideia de se tratar de uma pessoa inflexível, antipática, que não permitia intimidade. Nesse momento, chegou um rapaz, viu a fotografia e exclamou: "É meu pai!" Os outros olharam para ele e, apontando a fotografia, comentaram: "Pai severo, hein!" Ele respondeu: "Não! Não é não! Ele é muito carinhoso. Meu pai é advogado. Aquela fotografia foi tirada no tribunal, na hora em que ele denunciava o crime de um latifundiário que queria despejar uma família pobre que estava morando num terreno baldio da prefeitura há vários anos! Meu pai ganhou a causa. Os pobres não foram despejados!” Todos olharam de novo e disseram: "Que fotografia simpática!” Como por um milagre, ela se iluminou e tomou um outro aspecto. Aquele rosto tão severo adquiriu os traços de uma grande ternura! As palavras do filho, mudaram tudo, sem mudar nada!

As palavras e gestos de Jesus, nascidas da sua experiência de filho, sem mudar uma letra ou vírgula sequer, mudaram todo o sentido do Antigo Testamento (Mt 5,17-18). O mesmo Deus, que parecia tão distante e severo, adquiriu os traços de um Pai bondoso de grande ternura! Jesus comunica este Espírito aos que nele crêem e, assim, os ajuda a captar o sentido pleno das suas palavras (Jo 14,25-26; 16,12-15).

Um exemplo concreto de como Jesus interpreta a Bíblia

Para orientar as Comunidades dos anos 80 na interpretação da Bíblia, Lucas apresenta Jesus que abre o sentido pleno da Escritura para os discípulos desanimados na estrada de Emaús (Lc 24,13-35). Nele ele descreve quais são os vários passos do processo da interpretação:

1º Passo: partir da realidade  (Lc 24,13-24): Jesus encontra os dois amigos numa situação de medo e dispersão, de descrença e desespero. Eles estavam fugindo. As forças de morte, a cruz, tinham matado neles a esperança. Jesus se aproxima e caminha com eles, escuta a conversa e pergunta: "De que estão falando?" A ideologia dominante impedia-os de enxergar e de ter consciência crítica. "Nós esperávamos que ele fosse o libertador, mas..." (Lc 24,21).

O primeiro passo é este: aproximar-se das pessoas, escutar a realidade, os problemas; ser capaz de fazer perguntas que ajudem a olhar a realidade com um olhar mais crítico.

2º Passo: usar o texto da Bíblia  (Lc 24,25-27): Jesus usa a Bíblia não para dar uma aula sobre a Bíblia, mas para iluminar o problema que fazia sofrer os dois amigos; para esclarecer a situação que eles estavam vivendo; para situá-los dentro do projeto de Deus, e mostrar que a história não tinha escapado da mão de Deus.

O segundo passo é este: com a ajuda da Bíblia, transformar a cruz, sinal de morte, em sinal de vida e de esperança. Aquilo que impede de enxergar, torna-se luz e força na caminhada. Condição para se poder fazer este segundo passo é ter familiaridade com a Bíblia, o que vai exigir leitura diária.

3º Passo: celebrar e partilhar na comunidade  (Lc 24,28-32): A Bíblia, ela por si, não abre os olhos. Mas faz arder o coração! (Lc 24,32). O que abre os olhos e faz os dois amigos perceberem a presença de Jesus, é o partir do pão, o gesto comuni­tário da partilha, a celebração. No momento em que é reconhecido, Jesus desaparece. Pois eles mesmos experimentam, dentro de si, a ressurreição, renascem e caminham por si.

O terceiro passo é este: saber criar um ambiente orante de fé e de fraternidade, onde possa atuar o Espírito que nos faz entender o sentido das coisas que Jesus falou. É sobretudo neste ponto da celebração, que a prática dos pobres nos ajudou a reencontrar o antigo poço da Tradição para beber da sua água.

O objetivo: ressuscitar e voltar para Jerusalém (Lc 24,33-35): Tudo mudou. Eles mesmos ressuscitam! Os dois criam coragem e voltam para Jerusalém, onde continuavam ativas as forças de morte que mataram Jesus, mas onde também se manifestam as forças de vida na partilha da experiência de ressurreição. Coragem, em vez de medo. Retorno, em vez de fuga. Fé, em vez de descrença. Esperança, em vez de desespero. Consciência crítica, em vez de fatalismo frente ao poder. Liberdade, em vez de opressão. Numa palavra: vida, em vez de morte! Em vez da má noticia da morte de Jesus, a Boa Notícia da sua Ressurreição!

O objetivo da leitura orante da Bíblia é este: experimentar a presença viva de Jesus e do seu Espírito, presente no meio de nós. É ele que abre os olhos sobre a Bíblia e sobre a Realidade e leva a partilhar a experiência de Ressurreição, como até hoje acontece nos nossos encontros comunitários.

Carlos Mesters, O. Carm.

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