Discurso do novo Prior Geral dos Carmelitas, Fr. Desiderio García, na conclusão do Capítulo Geral de 2025

 

Desiderio Garcia StPaulSchoolJember

No último dia do Capítulo Geral da Ordem dos Irmãos da Bem-aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo, que decorreu em Malang, na Indonésia, de 9 a 26 de Setembro de 2025, os participantes reuniram-se na aula capitular para escutar o discurso do novo Prior Geral, Fr. Desiderio García Martínez, com o qual se encerraram os trabalhos capitulares. No seu discurso, o Prior Geral partilhou com os eles as suas reflexões sobre o Capítulo e quatro intuições pessoais sobre aquilo a que a Ordem é chamada a empreender no sexénio que agora começa. Transcrevemos o seu discurso na íntegra:

“Deveis fazer algum trabalho” (Regra 20). A nossa fraternidade contemplativa discerne a sua missão

Malang, Indonésia, de 9 a 26 de setembro de 2025


Queridos irmãos:

       Recordando o lava-pés (cf. Jo 13,1-15), D. Tonino Bello dizia que a verdadeira autoridade na Igreja se exerce “pondo o avental”. O Deus das surpresas tinha um presente em forma de cruz e procurava alguém a quem abraçar. Com temor e tremor aceito esta responsabilidade como um serviço de amor a Deus, à Igreja e à Ordem do Carmo em cada um de vós, meus irmãos, para que possamos levar à plenitude a vocação à qual fomos chamados.

       Quando era jovem, fui acompanhado espiritualmente por um grande carmelita, o P. Rafael Maria López Melús, O.Carm. Ele tem 97 anos, sofreu dois AVCs e eu tive a imensa sorte de poder viver em comunidade com ele em Madrid-Ayala. Lembro-me de, quando era adolescente, um dia lhe ter perguntado o que era o Céu. Ele respondeu-me com muita naturalidade, citando outro carmelita, o P. Enrique Maria Esteve, O.Carm.: “O Céu, no Carmelo, são Jesus e Maria”. Sempre me surpreendeu a sua simplicidade, a sua vivacidade, o seu entusiasmo. Um dia, deu-me um livro de aforismos: O livro do amigo e do Amado, de Ramón Llull, filósofo e místico espanhol do século XIV, natural de Maiorca. Nele há uma máxima que me acompanhou toda a vida: “O Amado pergunta ao amigo: 'Terás paciência se eu duplicar as tuas dores?'. 'Sim', responde o amigo, 'desde que tu dupliques os teus amores'". Foi isto que me veio à mente no dia da minha eleição como Prior Geral: dores e amores. Se o Amor é o motor das nossas vidas, não há nada a temer. É o nosso Deus amoroso que fará tudo. Basta deixá-lo fazer. O que sei hoje, fazendo memória, é que fui e sou feliz e, se nascesse mil vezes, mil vezes voltaria a ser carmelita.

       Permitam-me que, em seguida, partilhe convosco quatro intuições daquilo que vivi durante o Capítulo Geral. São apenas algumas ressonâncias.

       1. Deixar que Deus seja Deus. Nestes dias, recordámos que a contemplação não é apenas o coração do carisma carmelita, mas é em si mesma o melhor dom que podemos oferecer ao mundo e à Igreja. “Como mendicantes, estamos abertos a todo o ministério e apostolado” (cf. RIVC 113; Const. 95). Ora, dado que nós, carmelitas, realizamos a nossa missão no meio do povo, sobretudo com a riqueza da nossa vida contemplativa, “façamos o que fizermos, dedicamo-nos de forma especial ao caminho espiritual das pessoas” (cf. RIVC 113; Const. 95). A contemplação é um dinamismo de amor que nos eleva à união com Deus e nunca nos separa da terra e da vida dos homens. O dom da contemplação impele-nos a passar com facilidade de uma dimensão para a outra do carisma (oração, fraternidade e serviço), como quem não muda de atitude, mas apenas a forma de expressar essa relação permanente de amor com Deus. Quem vive de forma consciente, como o profeta Elias, na presença de Deus (cf. 1 Rs 17,1), diz São João da Cruz que “em todas as coisas encontra notícia de Deus” (2 Sub. 26,6). A vida comum é, acima de tudo, o lugar por excelência onde esta presença de Deus acontece. O nosso irmão Jack Welch, O.Carm., que faleceu ontem, notava com acerto – e eu subscrevo-o totalmente – que “o maior desafio profético do Carmelo é ajudar o mundo de hoje a cultivar a vida interior”. A formação inicial e permanente, o cuidado das casas de formação, a formação dos formadores, o estudo e o aprofundamento da nossa tradição carmelita (dando especial atenção à Virgem Maria, nossa Mãe e Irmã, como figura inspiradora do Carmelo) são tarefas que na Ordem, durante este sexénio, e em ordem à vida interior, devemos continuar a cuidar.

       2. Marta e Maria devem andar sempre juntas. Na nossa Ordem, nos últimos cinco anos, ouvi os irmãos dizerem o seguinte: “No fundo, não se trata tanto do que fazemos, mas de como fazemos o que fazemos”. Os nossos místicos também o assinalaram: “Não construamos torres sem fundamento, pois o Senhor não olha tanto à grandeza das nossas obras, quanto ao amor com que são feitas” (S. Teresa de Jesus, 7 Mor. 4,15). Por isso, “Marta e Maria devem andar juntas” (S. Teresa de Jesus, 7 Mor. 4,12). As nossas obras – acrescentará ela – quando brotam das “raízes da contemplação” e “provêm desta árvore do amor de Deus”, tornam-se “admiráveis e perfumadíssimas flores” cuja fragrância “dura, não passa depressa... mas produz grandes efeitos” (S. Teresa de Jesus, Conc. 7, 3.7). É um convite para que as nossas obras exalem não tanto o aroma do nosso “ego”, como a “suave fragrância de Cristo” (cf. 2Cor 2,15).

       Para que o dom da contemplação não se corrompa, a Regra, recordando São Paulo, exorta-nos a trabalhar em silêncio: “Deveis fazer algum trabalho” (Regra 20). Em princípio, não deveria haver qualquer contradição entre o trabalho e a oração. “A oração não é um oásis no deserto da vida, mas toda a vida” (S. Tito Brandsma). Ora, temos ouvindo nestes dias: podemos continuar a ‘fazer tudo o que fazemos’? O filósofo Fabrice Hadjadj observava, a propósito do ativismo e do nosso estilo de vida, por vezes, frenético, no seu livro Tenha sucesso na sua morte, que chegou o momento de nos perguntarmos não só se há vida depois da morte, mas também “se temos vida antes da morte”. Neste sentido, vemos crises e pobrezas na nossa vida, e elas não nos devem alarmar. Mais do que uma desgraça, eu ousaria afirmar que elas fazem parte do processo contemplativo. Nestes dias, na Eucaristia, Ageu e Esdras convidavam-nos a reconstruir, com esperança, o templo de Deus. Esta reconstrução não se fundava num mero otimismo baseado em números, estratégias e capacidades humanas. Cristo é a pedra angular deste novo edifício. A esperança autêntica começa quando o caminho está semeado de fracassos. Aí também está Deus! No meio dos processos de mudança e reestruturação que terão de ser empreendidos nalgumas entidades da Ordem, ressoa com força nestes dias: “Não temais” (Ag 2,5). Um espírito fraterno de generosa ajuda e colaboração já se vê em muitas realidades da nossa Ordem. A Família Carmelita (leigos, irmãs e irmãos dos Institutos agregados, monjas, frades, o Carmelo Teresiano), inspirada na Regra de Santo Alberto, na sua tradição e espiritualidade, continua a crescer em comunhão.

       3. Vida comunitária: artesãos de fraternidade. Li uma vez que o primeiro bispo das Américas, D. Alonso Manso, quando chegou a Porto Rico, em 1512, visitou uma comunidade que era tão pobre que nem sequer tinha uma mesa para celebrar a Eucaristia. Convidou, então, aqueles homens e aquelas mulheres, num gesto maravilhoso, a entrelaçarem as mãos para que elas se tornassem o altar onde se ia celebrar a Eucaristia. Talvez não tenha sido muito litúrgico – como alguém me disse –, mas, sem dúvida, naquelas circunstâncias, foi muito mais evangélico e profético! Homens de todas as raças, línguas, povos e nações – como aqui em Malang – unem não só as suas mãos, mas também as suas vidas para que elas sejam um altar que acolhe Cristo Eucaristia. A internacionalidade das nossas comunidades é cada vez mais visível.

       Surge um duplo desafio: a tentação do imobilismo e de, por vezes, nas comunidades se descuidarem os elementos básicos da nossa vida fraterna: o capítulo local, a lectio divina, o recreio comunitário, as refeições, o diálogo, a correção fraterna, o perdão... (cf. Const. 35). Os Padres da Igreja também alertaram para os perigos da vida isolada e solitária. “Se eu viver completamente só, a quem lavarei os pés? (cf. Jo 13,8-10). Se eu viver completamente só, com quem me compararei para ser o último?” (cf. Mc 9,35). Ouvi, em certa altura, que, sendo realistas, em qualquer grupo humano, se 20% dos seus membros não estivessem presentes, “tudo funcionaria melhor” ou, pelo menos, “tu estarias mais tranquilo”. Ora isto não é uma empresa! “Carregai os fardos uns dos outros” (Gal 6,2). É Cristo que nos convoca como irmãos e ninguém está a mais. Que contemplativo é chamar ao outro “irmão”! (cf. Sl 122,8). É sempre um desafio que a comunidade irradie a alegria de Cristo Ressuscitado, ao mesmo tempo que se converte num lugar tranquilo onde possamos cuidar uns dos outros e onde se torne visível o “mandamento do amor” (cf. Jo 13,34-35). A Institutio* lembra-nos que ninguém permanece na caridade se não perseverar na humildade. Não esqueçamos que toda a vocação amadurece no seio de uma comunidade visível e real. A autenticidade e atração da nossa vida comunitária são a chave do acompanhamento vocacional e da pastoral juvenil.

       4. Missão: abrir janelas da esperança. Santa Maria Madalena de Pazzi dirigia-se a Jesus, chamando-o “Louco de Amor!” — “Tu estás louco de Amor”. Um dia, num dos seus excessos, pegou no crucifixo, desprendeu Jesus dele e, abraçando-o, começou a dizer-lhe: “Amor, Amor, Amor, não amado nem conhecido por ninguém!”. E exclamou, em seguida: “Amor, Amor, dá-me uma voz tão forte que, ao chamar-te Amor, eu seja ouvida do Oriente ao Ocidente, em todas as partes do mundo, até no inferno, para que sejas conhecido e amado por todos, Amor!”. “Amar o Amor”. “No coração da Igreja, minha Mãe, eu serei o Amor” (S. Teresinha do Menino Jesus, Ms. B, 3vº). Os nossos místicos puseram o amor no coração da missão e da Igreja. O que é a evangelização senão um grito, um ímpeto, no qual desejamos que o amor de Deus chegue até aos confins da terra? (cf. Mt 28,19-20).

       A evangelização e o diálogo inter-religioso, longe de se oporem, sustentam-se e alimentam-se reciprocamente (cf. Ad Gentes 9). De facto, estamos a ver isso neste momento histórico em que o nosso Capítulo Geral é celebrado, pela primeira vez, na Ásia (Indonésia). Jesus, o Senhor, une-se ao grito da humanidade quando esta parece enfraquecer e ajuda-nos para que a justiça e a paz não sejam apenas uma utopia (cf. Papa Francisco, Fratelli tutti 30). O autêntico contemplativo é portador da luz de Cristo Ressuscitado, abrindo janelas de esperança no meio das noites da humanidade: pobreza, guerras, abandono, esquecimento da dignidade do homem, perseguições por motivos raciais ou religiosos, o sofrimento dos inocentes... (cf. Papa Francisco, Fratelli tutti 25). No nosso anúncio, “alargamos a nossa tenda” (cf. Is 54, 2-3) para que nele caiba Deus e aqueles que vêm com Ele: a humanidade. Como nos lembrou o Papa Francisco (2019**): “Se um dia, à nossa volta, não houvesse mais doentes e famintos, abandonados e desprezados – os menores (cf. Const. 24) de que fala a vossa tradição mendicante – não é porque não os haja, mas, simplesmente, porque não os vemos”. A verdadeira contemplação leva-nos à ternura e à compaixão, a tocar as chagas do Corpo de Cristo e a curar feridas. O próprio Cristo confiou-nos o cuidado e a proteção dos mais pequenos e indefesos: “Quem receber em meu nome uma criança como esta, a mim recebe” (Mt 18,5). Comprometemo-nos decididamente a que as nossas comunidades e ministérios sejam espaços seguros para os menores e as pessoas vulneráveis.

       Gostaria de pedir aos irmãos que durante este sexénio abramos juntos um período de estudo, reflexão, meditação e discernimento da nossa vida à volta da Eucaristia. No Carmelo, do mesmo modo que existe um estreito vínculo entre o Carmelo e a Palavra, existe um profundo binómio entre o Carmelo e a Eucaristia. Na Eucaristia convergem a relação com Deus, com os irmãos, com a Palavra... A Missa é apenas uma soma de rubricas? A Missa é apenas uma recompensa ou paga pela nossa bondade e méritos? A nossa tradição espiritual, escritores, místicos (Regra, João Soreth, Maria Madalena de Pazzi, João da Cruz, Tito Brandsma, Teresinha do Menino Jesus, Maria Crocifissa Curcio...) oferecem-nos pistas para a reflexão teológica, espiritual, litúrgica, pastoral e também para a renovação da nossa vida carmelita. Como poderíamos nós ser uma comunidade contemplativa ao serviço do povo sem nos aproximarmos da Eucaristia e sermos alimentados por Cristo com um espírito renovado?

       Termino com umas palavras da carta que Frei Pablo Maria da Cruz, O.Carm., dirigiu ao Papa Francisco por ocasião da JMJ de Lisboa 2023: “No Carmelo, o Jardim de Deus, antecâmara do Céu, cresce Maria, o Girassol de Deus, a quem gosto de chamar e imaginar como a Virgem da Primavera. Peço-lhe que transforme os desertos da dor em jardins de consolação, e nas suas mãos deposito a evangelização dos jovens”.

       Rezem por mim.
       Muito obrigado.

P. Desiderio García Martínez, O.Carm.
Prior Geral

     ________________________

     *  Institutio I, 8. O Prior Geral refere-se ao chamado Livro da Instituição dos primeiros monges, da autoria do carmelita catalão Fr. Felip Ribot (c. 1385), onde o autor apresenta as linhas da espiritualidade carmelita à luz da vocação e figura do profeta Elias, a partir da passagem de 1 Rs 17, 1-4 (ndT).

    ** Papa Francisco, Discurso aos participantes no Capítulo Geral da Ordem dos Irmãos Bem-aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo (Carmelitas), 21 de setembro de 2019 (ndT).

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